#6 - Ghraul

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"...uma lâmina empunhada com leveza, concentração e técnica, pode ser mais rápida do que o vento ou a água, mas para encontrar esse estado, é preciso estar em equilíbrio. Mantenham a espada sempre ao seu lado e façam com que ela seja parte do seu corpo. Mantenham o coração em paz e façam com que ele seja a principal arma. Reforcem a meditação essa semana. Dispensados."

Os adolescentes se levantaram e saíram apressados da sala. As aulas do mestre Rhano exigiam muito da pouca atenção que os adolescentes tinham nessa idade.

"Espero que na minha época eu não saísse de forma tão barulhenta de uma aula sua de meditação." – disse o monge enquanto entrava na sala.

O riso seco de Rhano disse o contrário.

"Sem dúvida o ataque àquela aldeia ao Norte os deixou mais agitados, mas os últimos anos de treinamento são os mais difíceis. Eles pensam que precisam praticar os movimentos, a agilidade, os golpes, mas tudo isso já foi passado. O estudo agora é outro, mas eles são jovens demais para entender."

"Talvez eu esteja precisando voltar às suas aulas. A iniciação de Quel será em duas semanas." – a voz de Zer transparecia o peso desse momento.

Rhano observou o monge com compaixão e disse: "As tempestades. Consigo vê-las em você. Vamos caminhar."

Ao saírem da sala na direção dos pátios externos, Rhano os levou por de trás das arenas de treino.

"Você já ouviu falar de um aprendiz chamado Ghraul?"

O nome era desconhecido para Zer.

"Isso aconteceu antes da sua iniciação. O menino chegou aqui desnutrido e parecia ter vindo de muito longe. Acredito que ele foi enviado para cá como uma forma de sobrevivência, ele nunca mais teve notícias da família. Apesar da fragilidade aparente, o menino tinha muita garra, e eu prometi a mim mesmo que o faria ser mais do que apenas um sobrevivente."

Aquele sentimento era familiar para o monge que ouvia.

"Acontece que Ghraul era na mesma medida esforçado e talentoso. Sua habilidade com a espada era muito além do normal e isso me fascinava. Eu o treinava sem dó, até seus dedos sangrarem, e ele correspondia. Minha afeição e admiração por seu desempenho me desviaram do fato de que ele fazia escolhas duvidosas quando não se tratava da espada."

Saindo da área de treino, Rhano os conduziu por um caminho na direção dos refeitórios.

"Ele usava seu talento para se colocar acima dos demais. Os poucos amigos que tinha estavam mais interessados em não o desagradar do que de fato ter sua companhia. Eu fui cego para sua arrogância e só a percebi tarde demais."

Entrando nos refeitórios, a dupla pegou um chá e se sentou na ponta de uma das grandes mesas do salão quase vazio.

"Um ano antes de terminar o treinamento, ele resolveu ir embora. Disse que havia recebido um convite para se juntar a uma força de elite de um exército do Norte e que partiria no dia seguinte. Sua petulância era tanta que ele sequer considerou que isso não seria permitido."

Zera baixou a cabeça e disse em um tom sussurrado: "Mas Rhano, não repassamos convites para aprendizes. E somos criteriosos com o tipo de proposta que os jovens formados recebem."

"Eu sei. Até hoje nunca descobri como aquele convite oficial, com um brasão misterioso, chegou diretamente em suas mãos. Não passou por nenhum mestre e estava endereçado com o nome dele."

O ancião olhou para baixo, com se pudesse sentir novamente a decepção e a sensação de impotência que sentiu naquela conversa com Ghraul.

"Não deve ter sido fácil deixá-lo ir." – e imaginou o dia em que Quel também partiria.

"Você acha que nós permitimos?" – antes que pudesse continuar, uma voz potente gritou do outro lado do refeitório.

"Mestre Zer! Estava te procurando!" – a mulher corpulenta, vestida de azul-marinho da cabeça aos pés, andou rapidamente na direção dos dois segurando um embrulho. A Chefe de Administração da vila tinha passos firmes, uma postura altiva, e carregava uma cicatriz da bochecha até o queixo que quase desaparecia junto a doçura do seu sorriso.

"Aconteceu algo com Quel, Ramira?" – Zer disse sobressaltado.

Com um cumprimento rápido de cabeça para os mestres, Ramira colocou o embrulho na mesa e o abriu.

"Ela continua brincando lá fora. Mas os ajudantes ficaram arrasados com sua tristeza, então um rapaz da casa têxtil fez esse calendário de duas semanas para que ela possa acompanhar o tempo até sua iniciação." – e abriu um enorme sorriso levantando a peça para demonstrá-la.

Era um tecido rendado nas bordas com dois ganchos na parte de cima e quatorze pequenos compartimentos divididos em duas fileiras no meio.

"O pessoal da cozinha preparou 14 biscoitos, um em cada bolso. Assim, todo dia pela manhã ela acorda, come um biscoito e sabe que ao comer o último biscoito, é chegado o grande dia!" – Ramira não se cabia de alegria com a peça. "Podemos entregar para ela?"

Zer pegou a peça encantado com a velocidade com que a haviam produzido e deu um olhar de esguelha para Rhano, sabendo a opinião do antigo mestre.

"Vocês precisam parar de mimá-la, Ramira, mas sim, podem entregar. Ela vai amar, e isso vai ajudar a conter sua ansiedade nos próximos dias. Eu espero."

Após devolver o calendário de pano para a mulher, Zer se virou para Rhano com o intuito de continuar ouvindo a história, mas o monge já se levantava.

"Você, como sempre, Ramira, é muito generosa." – e parou seu olhar no rosto da administradora por um instante antes de se voltar para Zer: "Tenho certeza de que você não quer perder esse momento. Talvez seja o ponto alto do aniversário de Quel. Vamos juntos até o pátio." E começou a caminhar ao lado de Ramira.

Poderia ser apenas coincidência, mas alguma coisa dizia a Zer que Rhano se aproveitou da situação para não revisitar algo que ainda doía. E decidiu seguir a dupla para fora do refeitório.

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Espero que esteja curtindo :)
Novos capítulos todos os sábados 🌻

Os Contos de Greenfar - A Lenda de QuelOnde histórias criam vida. Descubra agora