#7 - Ramira

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Como era de se esperar, o brilho voltou aos olhos de Quel quando ela recebeu o presente das mãos de Ramira. A menina parecia um raio quando correu para pendurar o calendário na cabeceira de sua cama e em seguida adormeceu exausta.

Tudo parecia em paz quando o dia chegou ao fim, mas Zer estava inquieto. Como ele nunca havia ouvido falar de um aprendiz chamado Ghraul? Provavelmente era um assunto banido pelo Conselho. Pedir para Rhano continuar a história parecia inviável, já que o antigo mestre havia sumido depois do refeitório.

Todos os monges que tinham idade para terem conhecido o tal aprendiz já eram parte do Conselho, então qualquer questionamento de um tema banido seria prontamente repreendido. Era melhor ir dormir e esperar a disposição de Rhano em contar a história.

O sono leve e agitado de Zer o fizeram navegar por sonhos turbulentos, onde Quel se tornava uma jovem rude, grosseira e ingrata. A visão de Quel indo embora no dia da iniciação foi o suficiente para que Zer desistisse de dormir e fosse até o refeitório buscar um chá.

Tentando afastar as imagens de horror dos seus sonhos, Zer bebia vagarosamente um chá de camomila em uma das poucas mesas iluminadas do refeitório, quando uma figura se sentou ao seu lado.

"Achei que depois de um dia como hoje, você precisasse de um boa noite de sono, mestre Zer."

"Eu sempre fico impressionado com sua disposição, Ramira. Você não dorme nunca?"

"Durmo pouco, mas durmo bem." – e levantou sua xícara em um cumprimento sutil antes de tomar um gole de chá. O monge retribuiu o gesto.

Após alguns instantes de um silêncio confortável, Zer perguntou:

"Você nunca quis ter filhos, Ramira?"

A mulher deu uma risada curta de ombros e respondeu: "Você não acha suficiente todas as crianças que eu ajudo a criar nesse lugar? Acho que ter apenas um ou dois filhos não me preencheria tanto quanto o que faço aqui."

A mulher lançou um olhar desconfiado para o monge.

"É sobre Quel, não?"

Com uma expressão pesarosa, Zer fez que sim com a cabeça.

"Ela só tem 6 anos, Ramira. Nem começou o treinamento e me encontro nesse estado deplorável. Depois de tantos aprendizes, sinto que desaprendi a entrar no estado de concentração e a separar as coisas. E para piorar, o mestre Rhano me contou uma história pela metade e minha imaginação está me levando para os piores cenários possíveis."

Ramira deu uma gargalhada larga ao ouvir aquele desabafo.

"E que história foi essa que tirou tanto a sua paz?"

"Não sei ao certo, era um aprendiz antigo e arrogante. Parece que Rhano era muito afeiçoado a ele, mas ele não terminou de me contar o que aconteceu depois que ele decidiu ir embora antes do fim do treinamento."

A expressão de Ramira mudou completamente. Qualquer resquício de alegria deixou seu rosto quando ela disse, hesitante:

"Ghraul."

Zer olhou sobressaltado para a chefe de administração da vila. Talvez o assunto não tivesse sido banido.

"Sim, esse mesmo! Você sabe o que aconteceu?"

Ramira deu um longo suspiro parecendo buscar palavras para falar. Olhando para baixo, ela disse:

"Esse assunto foi banido pelo Conselho."

"Eu imaginei." – respondeu Zer, sem nenhuma esperança de saber o final da história.

"Mas se Rhano começou a contá-la a você, e ele é do Conselho, imagino que tenha bons motivos. E se tem alguém que pode finalizá-la, sou eu."

O monge a olhou intrigado enquanto Ramira apoiava a mão no rosto e perguntou até onde Rhano havia contado. Ele relatou os fatos até a chegada do convite misterioso para um exército do Norte.

"Serei sincera: Ghraul era um rapaz detestável que se achava melhor do que todo mundo, inclusive dos mestres. Ele não aceitou quando Rhano disse que ele não partiria até encerrar o treinamento e começou a dizer que o mestre não suportava o fato do seu aprendiz ser mais habilidoso que ele - uma grande bobagem, é claro. Todo mundo sabia que Rhano era um dos espadachins mais habilidosos da vila e o amava como se fosse seu pai.

E acredito que foi nesse ímpeto de perder um filho que Rhano, como último recurso, sacou sua espada. Não para provar algo, mas para impedi-lo de ir.

Foi uma cena difícil de assistir. Era uma luta que não teria fim, os dois eram muito bons. Rhano era melhor, é claro, mas era visível que a raiva de Ghraul feria o mestre mais do que qualquer golpe. O rapaz percebeu que não podia vencer, então resolveu encerrar a conversa da pior maneira possível."

Zer sentiu um peso enorme no estômago imaginando o que viria.

"Nessa altura, os dois duelavam no pátio e muita gente chegava para saber o que estava acontecendo, então Ghraul correu e agarrou uma das ajudantes da cozinha, colocando sua espada em seu pescoço. Rhano não podia acreditar que o jovem era tão cruel assim e partiu para cima, mas ele desferiu um golpe sem dó no rosto da menina e disse que se mais alguém tentasse impedi-lo de ir embora, o próximo seria fatal.

Com toda a maldade de Ghraul exposta, Rhano quebrou por dentro. Ele caiu de joelhos e implorou para que o jovem reconsiderasse suas ações, largasse a menina e voltasse, mas foi em vão."

Ramira fez uma pausa, olhou nos olhos de Zer e disse com a mão no rosto:

"Ele me carregou, com a espada em meu pescoço e meu rosto sangrando, até muito longe na floresta. Eu tinha certeza de que ele me mataria em algum momento, mas quando já estávamos longe o suficiente, ele me largou e saiu correndo, sem nem olhar para trás."

O monge parecia não respirar ao ouvir o final da história, mas tentou dizer desconcertado:

"Ramira...eu não sabia que você, a sua cicatriz...se eu soubesse jamais teria trazido esse assunto...me perdoe..."

O sorriso voltou ao rosto da mulher. Com um olhar gentil, ela o interrompeu:

"Já faz tanto tem que não falo sobre esse assunto que quase havia me esquecido. Mas essa foi uma das minhas grandes motivações para seguir na vila e contribuir para que outros aprendizes não seguissem esse caminho. Rhano levou muito tempo para se recuperar disso e acho que ele ainda carrega essa dor até hoje. Talvez como uma forma de compensação e cura, ele trabalhou por alguns anos para reformular todo o currículo de autoconhecimento dos aprendizes mais velhos, para que ninguém coloque suas habilidades acima de seu caráter."

Zer estava em choque. Caso a história não tivesse sido confirmada por duas pessoas tão confiáveis, ele poderia afirmar tranquilamente que era uma invenção. Um aprendiz se voltar contra seu mestre era algo inimaginável dentro dos preceitos dos monges espadachins.

"Agora você já tem o seu desfecho e seu coração pode ficar em paz, porque uma coisa eu posso te garantir: essa história não vai se repetir com Quel. Ela é uma menina doce e será uma espadachim gentil e querida. Só lhe falta o treino."

O monge usou as poucas palavras que conseguiu balbuciar para agradecer a generosidade de Ramira em contar sua história. Ele teria muito para processar nas poucas horas que faltavam antes do amanhecer.

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Preciso confessar: eu adoro a Ramira! E vc?
Novos capítulos todos os sábados 🌻

Os Contos de Greenfar - A Lenda de QuelOnde histórias criam vida. Descubra agora