Minha avó, dona Amélia, sempre foi uma mulher prática, de pés no chão. Ela foi maquiadora por mais de trinta anos, a maior parte desse tempo em um famoso programa de TV dos anos 80, chamado "Visões do Amanhã". Era um show peculiar, de ficção científica com um toque sombrio, que explorava os cantos mais escuros do futuro, muito parecido com "Além da imaginação", e hoje em dia diríamos: isso foi muito Black Mirror. Embora poucos o conheçam ainda, ele teve uma legião de seguidores na época. No entanto, por trás do brilho das câmeras e das histórias que desafiavam o imaginário, havia algo que nunca aparecia na tela. Algo que assombrava os bastidores.
Eu cresci ouvindo as histórias da minha avó sobre o programa, bem angustiada mesmo tantos anos depois. O estúdio ficava no centro da cidade de São Paulo, em um prédio velho, todo de concreto, que parecia ter resistido ao tempo por pura teimosia. Suas paredes grossas abafavam o som do mundo exterior, e os corredores sem janelas eram iluminados por luzes amareladas que piscavam de forma irregular, como se estivessem à beira de apagar. Minha avó sempre falava que, uma vez lá dentro, a sensação de tempo e espaço se diluía, como se o lugar existisse numa bolha, fora da realidade.
Ela contava que uma noite, no meio de uma gravação crucial, as luzes começaram a falhar. Não era um simples piscar – era um apagar brusco, seguido de um silêncio profundo que engolia os ruídos usuais do estúdio. Os técnicos correram para verificar a fiação, mas não encontraram nada de errado. Mesmo assim, o estúdio foi tomado por uma inquietação coletiva, algo que ninguém podia explicar. A partir desse dia, dizia minha avó, ninguém mais se sentia sozinho ali. Era como se uma presença invisível rondasse o lugar, observando, esperando.
As coisas pioraram à medida que os roteiros do programa ficavam mais ousados, explorando temas macabros e apocalípticos. Foi quando começaram os acidentes. Primeiro, pequenos incidentes: uma câmera que desligava sozinha, um refletor que caía de repente. Mas então, atores começaram a se machucar de formas bizarras, como se estivessem sendo puxados por algo que ninguém via. Minha avó nunca foi de acreditar no sobrenatural, mas até ela admitia que havia algo de estranho no ar.
Uma noite, enquanto arrumava os pincéis e maquiagens no camarim, ela ouviu passos no corredor. Pesados, lentos, ecoando no silêncio. Já era tarde, e todos haviam ido embora. Curiosa, minha avó foi verificar. Encontrou Júlio, o diretor do programa, parado no meio do corredor, como uma estátua. Ele estava de costas para ela, a cabeça inclinada para frente, murmurando algo que ela não conseguiu entender. Quando se aproximou, o som ficou mais claro. "O futuro já foi escrito", ele dizia, repetindo a frase como um mantra. Ela o chamou pelo nome, mas ele não reagiu. Somente quando tocou seu ombro, ele despertou do transe, virou-se para ela com olhos arregalados, cheios de medo, e fugiu pelo corredor sem dizer uma palavra.
No dia seguinte, Júlio desapareceu. Disseram que ele teve um colapso nervoso, que estava sobrecarregado com o trabalho, mas minha avó nunca acreditou nisso. Alguma coisa havia mudado nele naquela noite, algo que ninguém conseguia explicar. Depois do incidente, as gravações continuaram, mas o que veio a seguir foi ainda mais perturbador.
Os roteiros que os escritores entregavam começavam a se parecer demais com a vida real. Pequenos detalhes, como diálogos triviais ou gestos insignificantes, passavam a acontecer exatamente como escrito. E não eram coincidências – era como se o programa estivesse moldando a realidade ao redor de quem participava.
Uma cena particularmente estranha aconteceu durante uma gravação em que um dos personagens, que deveria sofrer um acidente de carro, terminou o dia envolvido em um verdadeiro desastre no caminho para casa. O roteiro estava à frente da realidade, como um reflexo distorcido que previu, ou talvez, causou, o ocorrido.
Eventualmente, o programa foi cancelado sem qualquer explicação oficial. O estúdio foi fechado para sempre. Minha avó nunca mais trabalhou na televisão depois disso. Ela dizia que era apenas cansaço, mas sempre que falava sobre "Visões do Amanhã", eu sentia que havia algo mais. Algo que ela não queria, ou não podia, me contar.
◇
Anos se passaram, e um dia, enquanto visitava um brechó/sebo no centro de São Paulo, encontrei um velho VHS do programa. Reconheci o nome de um dos episódios finais e, movida pela curiosidade e nostalgia, decidi assistir. Eu me sentei, coloquei a fita no videocassete, e a tela piscou com a familiar introdução do programa, os créditos antigos e a música metálica de fundo. Mas foi no meio do episódio que algo chamou minha atenção. O personagem principal, vestido com um terno cinza desbotado, caminhava lentamente por um corredor mal iluminado. Ele estava murmurando algo. Quando aumentei o volume, quase não acreditei no que ouvia. "O futuro já foi escrito."
Meu coração disparou. Era a cena exata que minha avó havia descrito, mas o pior ainda estava por vir. No final da fita, após os créditos, algo que nunca deveria estar ali apareceu. Uma filmagem dos bastidores. Era exatamente essa cena, mas ao invés de ser Júlio, era minha vó. Ela estava parada, olhando fixamente para o chão, os lábios se movendo enquanto murmurava as mesmas palavras. "O futuro já foi escrito."
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Ainda bem que o programa não existe mais, né?
Fiz essa história pensando em creepypastas (que eu amo) sobre programas de TV.
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Sussurros
HororContos de terror que me vêm à mente quando tudo o que me resta é escrever. ◇ Contos autorais ◇ Direitos reservados