Capítulo 3: O Peso da Noite

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A noite caiu como um manto pesado sobre a mansão dos Juízes Albuquerque. As estrelas, que costumavam brilhar no céu claro, pareciam ter se escondido atrás das nuvens espessas. O ar estava denso, quase sufocante, e Ludmilla sentia cada segundo como um golpe invisível, se aproximando de um destino que ela não queria enfrentar.

Desde o final da tarde, os corredores estavam envoltos em um silêncio ainda mais profundo do que o habitual. Os empregados evitavam cruzar o caminho de Xamã, sentindo a tensão no ar. Brunna, por sua vez, terminava suas tarefas na cozinha, mas não conseguia afastar da mente a cena que testemunhara mais cedo. O olhar vazio de Ludmilla a perturbava, como se a mulher estivesse sendo lentamente consumida de dentro para fora.

Enquanto o relógio da sala principal marcava sete horas, Ludmilla estava em seu quarto. Sentada diante do espelho, ela tentava controlar a respiração. A cada batida do relógio, sentia o peito apertar ainda mais. Sabia que não poderia fugir, e mesmo que tentasse, para onde iria? Xamã tinha uma presença onipresente em sua vida, como uma sombra que a seguiria até os confins da Terra.

Seu reflexo a encarava de volta no espelho, mas ela mal se reconhecia. O brilho que um dia habitou seus olhos havia desaparecido, substituído por uma névoa de medo e resignação. Os cabelos castanhos caíam soltos pelos ombros, e suas mãos trêmulas tentavam organizar os fios, como se um pequeno ato de controle pudesse lhe devolver alguma força. Mas era inútil. Ela sabia o que viria.

Os passos de Xamã, sempre firmes e calculados, ressoaram pelo corredor. Ludmilla ergueu o olhar para a porta, e sua respiração ficou presa na garganta. Ele estava chegando.

A porta se abriu lentamente, e Xamã entrou no quarto sem dizer uma palavra. Ele vestia um roupão escuro, os cabelos ainda molhados do banho que havia tomado, e seu olhar era de quem estava em total controle da situação. Ele a observou por um momento, como se estivesse avaliando sua disposição, e Ludmilla soube, naquele instante, que qualquer resistência seria inútil.

- Está pronta? - A voz de Xamã soou baixa, mas carregada de autoridade.

Ludmilla assentiu, sem encontrar forças para dizer mais nada. O peso das palavras que não foram ditas pairava sobre eles, e o quarto, que um dia fora o refúgio dela, agora parecia uma prisão sem grades.

Xamã se aproximou dela, parando logo atrás da cadeira onde ela estava sentada. Ele colocou as mãos em seus ombros, firmes, pesadas, como correntes que a mantinham cativa. Ludmilla tentou não demonstrar o quanto aquilo a afetava, mas seu corpo se enrijeceu involuntariamente.

- Isso - ele murmurou, como se estivesse satisfeito com sua obediência silenciosa. - Vai ser fácil se você não resistir. Está nas suas mãos, Ludmilla.

Ele a fez levantar-se da cadeira com um leve toque, conduzindo-a até a cama, onde ela se deitou com movimentos automáticos, sem vontade própria. Ludmilla sabia o que ele queria. Sabia que, para Xamã, aquilo não era um ato de intimidade ou carinho. Era um dever. Algo que ele exigia, como exigia respeito no tribunal. Para ele, ela era uma extensão de sua autoridade, um objeto para realizar seus desejos.

Xamã a deitou suavemente, mas não havia delicadeza real em seus movimentos. Ele a tratava como algo precioso, mas apenas na medida em que lhe servia um propósito. Ludmilla olhou para o teto, tentando se desconectar da realidade. Seus pensamentos vagaram para longe, buscando uma forma de se distanciar do que acontecia em seu corpo. Pensou no bebê que perdera, na dor devastadora do aborto, e no vazio que sentia desde então. Agora, seu medo de engravidar novamente se misturava ao pavor de Xamã.

Ela sentia seu toque, mas estava ausente. Seu corpo estava presente, mas sua mente flutuava para um lugar seguro, distante dali. Xamã, por outro lado, parecia imerso no controle da situação, movendo-se com um ritmo determinado, como se estivesse em uma missão. A cada movimento, Ludmilla tentava sufocar a angústia que crescia dentro de si, as lágrimas se acumulando em seus olhos.

Mas naquela noite, algo diferente aconteceu. Em meio ao torpor e à resignação, Ludmilla sentiu um impulso de resistência, uma faísca de vida que tentou emergir. Seu corpo, antes passivo, reagiu por um instante, o que fez Xamã parar abruptamente.

Ele olhou para ela, os olhos escurecidos pela raiva, e apertou seu braço com força, como se a estivesse advertindo.

- O que você acha que está fazendo? - A voz dele era um sussurro, mas cheia de ameaça. - Não se atreva a resistir.

Ludmilla mal conseguia respirar. O aperto em seu braço doía, mas a dor física era apenas uma fração do tormento que ela sentia por dentro.

- Eu... eu não posso - ela balbuciou, sem conseguir encontrar palavras melhores.

- Não pode? - Ele repetiu, com um sorriso irônico, inclinando-se sobre ela. - Você vai fazer o que eu digo, Ludmilla. Isso não é uma opção.

Ele se afastou, cruzando o quarto com passos lentos, como se estivesse tentando conter a raiva. Ludmilla permaneceu imóvel na cama, sentindo o coração martelar contra o peito, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, ele voltaria a exigir o que queria. Sua mente estava em caos. Por um breve instante, ela quase desejou que algo acontecesse para interromper aquela noite. Um telefonema, um som qualquer. Qualquer coisa que a livrasse da obrigação de seguir com aquilo.

Mas o silêncio da casa a envolvia, inabalável.

Xamã olhou pela janela por um momento, tentando se recompor. Ele sempre foi um homem de controle absoluto, mas naquele dia, com tudo o que havia dado errado no tribunal, ele parecia mais volátil do que nunca. Sua frustração, que antes estava contida, agora transbordava na forma de raiva mal disfarçada.

- Olha para mim - ele ordenou, voltando para junto dela. Ludmilla levantou os olhos lentamente, encarando-o com dificuldade. - Você é minha esposa. E como minha esposa, você tem deveres. Não me faça repetir isso.

Ludmilla queria gritar, mas sua voz estava presa. O medo a paralisava. Ela sabia que, se continuasse a resistir, a situação só pioraria. Então, ela cedeu. Suas defesas caíram, e ela deixou que Xamã fizesse o que quisesse, enquanto sua mente se desligava completamente do que acontecia ao redor.

A noite seguiu em um tormento silencioso. Quando tudo terminou, Xamã simplesmente se levantou e foi para o banheiro sem olhar para ela, como se o que havia acabado de acontecer não tivesse importância real. Para ele, aquilo era apenas mais um dever cumprido, mais um passo para alcançar o que queria: um herdeiro.

Ludmilla ficou deitada na cama, imóvel, sentindo as lágrimas escorrerem silenciosamente pelo rosto. Seu corpo tremia, mas sua mente estava entorpecida. Ela sabia que a noite havia terminado, mas o peso do que acontecera permaneceria com ela, se infiltrando em seus pensamentos, assombrando seus dias.

Quando Xamã voltou do banheiro, ele deitou-se ao lado dela, sem dizer uma palavra. Em poucos minutos, o som de sua respiração pesada indicava que ele havia adormecido, como se nada de extraordinário tivesse acontecido.

Mas para Ludmilla, aquela noite seria uma que ela nunca esqueceria. Era o reflexo cruel de seu casamento: o vazio, a opressão, o controle absoluto. Ela sabia que, enquanto continuasse naquela casa, as noites como aquela se repetiriam, uma após a outra, até que ela não tivesse mais forças para resistir.

Enquanto a mansão dormia, Ludmilla ficou acordada, observando o céu pela janela. E mesmo sem ver as estrelas, ela rezou silenciosamente por um milagre, por uma saída. Talvez, em algum lugar distante, uma luz ainda estivesse esperando para encontrá-la.

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