Capítulo 2: A Tempestade Antes da Calmaria

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O dia amanheceu nublado sobre a mansão dos Juízes Albuquerque, e o peso das nuvens parecia refletir a atmosfera carregada dentro da casa. Os primeiros raios de sol mal atravessavam as janelas enormes, lançando sombras longas pelos corredores. Ludmilla havia passado uma noite inquieta. Os lençóis de cetim estavam amarrotados, e seu corpo doía da tensão acumulada. Sua mente girava em torno das palavras de Xamã, repetidas em um ciclo interminável.

"Amanhã vamos tentar de novo."

Ela sentia como se estivesse à beira de um precipício, sem saber se teria forças para dar o próximo passo ou para resistir. O medo não a deixava respirar.

Na cozinha, Brunna se ocupava com as tarefas da manhã. Estava acostumada a começar o dia cedo, mas hoje sentia uma inquietação diferente, como se o ar ao seu redor estivesse carregado de presságios. Seu trabalho na mansão dos Juízes era novo, mas já percebera a frieza que rondava a casa. Os sussurros entre os outros empregados, o olhar distante e pesado de Ludmilla, e, é claro, a presença dominadora de Xamã. Mesmo sem nunca ter trocado muitas palavras com ele, Brunna sabia que o juiz era um homem temido, e ela havia aprendido a ser cautelosa perto de pessoas assim.

O relógio na parede marcava sete da manhã quando os passos firmes de Xamã ecoaram pelo hall. Brunna, que estava de costas enquanto terminava de arrumar a mesa para o café da manhã, paralisou por um instante ao ouvir o som. Ela rapidamente retomou o movimento, alisando o avental e colocando as mãos para trás, esperando para ver o que viria a seguir.

Xamã estava visivelmente irritado. O cenho franzido e os olhos semicerrados denunciavam que algo não havia saído como o planejado. Ele murmurava para si mesmo enquanto tirava o paletó, jogando-o de qualquer jeito sobre uma cadeira, e então caminhou até a mesa, onde Brunna já havia colocado o café.

- Preciso do meu café forte hoje - ele disse, a voz carregada de uma impaciência fria. - E que esteja pronto imediatamente.

Brunna acenou rapidamente com a cabeça, sem dizer uma palavra. A última coisa que queria era provocá-lo. Enquanto preparava a xícara, notou a respiração pesada de Xamã. Seus dedos batiam na mesa, num gesto de impaciência crescente. Ela terminou de servir e colocou a xícara à sua frente com cuidado, tentando evitar qualquer contato visual. Mas antes que pudesse se afastar, sentiu a mão de Xamã em seu pulso, segurando-a com firmeza.

- Ei, garota - sua voz era baixa, mas perigosa. Brunna sentiu um arrepio percorrer sua espinha. - Quando eu dou uma ordem, espero eficiência. Entendido?

Ela mal conseguiu sussurrar um "sim, senhor" antes que ele a soltasse. Brunna recuou para um canto da cozinha, o coração disparado. Mesmo sem olhar para ele diretamente, ela sabia que Xamã não era o tipo de homem que lidava bem com falhas, seja em casa ou no trabalho.

Enquanto ele tomava o café, parecia que cada gole só piorava seu humor. Xamã se inclinou para trás na cadeira e fechou os olhos por um momento, tentando acalmar a irritação crescente. Era óbvio que algo havia acontecido no tribunal, talvez um caso perdido, ou uma situação que fugira do seu controle - o que, para ele, era inaceitável.

Brunna tentava se manter ocupada, arrumando os utensílios e limpando as superfícies já limpas, apenas para evitar ser alvo de mais alguma explosão. O tempo parecia arrastar-se naquela cozinha, até que a voz fria de Xamã voltou a cortar o ar.

- Onde está Ludmilla? - ele perguntou, abrindo os olhos e voltando sua atenção para Brunna.

Ela hesitou por um segundo. Não sabia onde estava a esposa dele naquele momento, mas não queria mostrar qualquer sinal de incompetência.

- Não sei, senhor, mas posso chamá-la se desejar.

- Faça isso - ele respondeu com um tom seco, como se sua presença fosse necessária não por desejo, mas por uma função que ela deveria cumprir.

Brunna deixou a cozinha rapidamente, caminhando pelos corredores em busca de Ludmilla. Enquanto percorria o piso de mármore, sentia que estava se movendo entre mundos: o silêncio da casa contrastava com o caos que Xamã parecia carregar dentro de si. Ao virar a esquina, encontrou Ludmilla sentada no jardim de inverno, os olhos fixos nas plantas que dançavam ao ritmo suave do vento.

- Senhora? - Brunna falou em um tom baixo, quase com receio de interromper aquele momento de aparente tranquilidade. - O senhor Xamã está chamando a senhora.

Ludmilla não se virou de imediato. Seus olhos permaneceram fixos nas flores por alguns segundos, como se estivesse tentando absorver o máximo possível de paz antes de enfrentar o que viria a seguir. Quando finalmente se levantou, seus movimentos eram lentos, como se estivesse carregando o peso de uma vida inteira em seus ombros.

- Ele está de mau humor, não é? - Ludmilla perguntou, sem realmente esperar uma resposta. Brunna apenas assentiu. Ambas sabiam que os dias de Xamã eram medidos por uma linha tênue entre a calma e a tempestade.

Ludmilla caminhou à frente, os passos suaves quase não fazendo barulho no piso frio. Quando entrou na cozinha, viu o marido com a mesma expressão fechada, como uma tempestade prestes a desabar. Ele a olhou de cima a baixo, como se ela fosse a resposta para sua frustração.

- Finalmente - ele disse, com um tom que beirava o desprezo. - Sente-se.

Ela obedeceu, sabendo que, naquele momento, a resistência só traria mais dor. Brunna observava de longe, fingindo estar ocupada, mas seus ouvidos atentos não perdiam nenhum detalhe. Sentia uma mistura de curiosidade e desconforto em relação àquela dinâmica estranha. Havia algo errado entre eles, algo mais profundo do que simples mau humor.

- Tive um dia infernal no tribunal - Xamã começou, apertando os olhos como se revivesse os momentos de tensão. - E agora eu só quero um pouco de paz.

As palavras eram claras, mas Ludmilla sabia o que ele realmente queria. Não era paz. Era controle. Era a sensação de poder dominar algo - ou alguém - quando o mundo externo fugia de suas mãos.

- Hoje à noite - ele continuou, com a voz mais baixa, mas carregada de intenção. - Você sabe o que precisamos fazer. Não vou tolerar mais atrasos ou desculpas.

Ludmilla assentiu silenciosamente, o coração pesando mais a cada palavra. As mãos dela, pousadas sobre a mesa, tremiam ligeiramente, e Xamã notou. Ele estendeu a mão e cobriu a dela, o gesto que poderia parecer afetuoso a quem observasse de longe, mas que para Ludmilla não passava de uma corrente invisível apertando seu corpo.

- Está tudo bem, Ludmilla - ele disse, com um sorriso que não alcançava os olhos. - Só faça o que deve ser feito, e tudo ficará bem.

Ela não respondeu. Não havia o que responder. Apenas assentiu uma última vez, esperando que o peso das horas passasse rápido, e que a noite, por mais terrível que fosse, terminasse logo.

Brunna observava tudo em silêncio, sem saber o que pensar, mas com uma sensação crescente de que algo estava profundamente errado naquela casa. Ela sabia que deveria manter-se à distância, mas, ao mesmo tempo, sentia um estranho impulso de querer ajudar Ludmilla, mesmo que ainda não soubesse como.

O dia mal havia começado, e a tempestade já se formava sobre a mansão. A noite prometia ser longa.

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