Capítulo 1: O silêncio das flores

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O sol começava a se pôr sobre a imponente mansão dos Juízes Albuquerque. As sombras da noite se estendiam pelos corredores decorados com artefatos caros, como se fossem guardiãs de segredos inconfessáveis. Ludmilla estava na biblioteca, as mãos trêmulas sobre uma xícara de chá ainda intocada. O aroma da camomila não era suficiente para acalmar seu coração agitado.

Os passos firmes de Xamã se aproximavam, ecoando pelo piso de mármore. O silêncio que sempre precedia sua presença era uma advertência, uma sombra de tensão. Ludmilla já sabia o que viria a seguir. Quando a porta da biblioteca se abriu, ele entrou com a mesma imponência com que andava pelos tribunais: um homem que parecia nunca duvidar de nada, exceto da obediência dela.

- Ludmilla - sua voz cortou o ar, fria e autoritária. - Por que ainda está aqui?

Ela hesitou antes de responder, levantando os olhos lentamente.

- Eu só estava pensando... - começou, a voz fraca, quase imperceptível. Mas Xamã não gostava de desculpas vagas. Ele atravessou o cômodo com passos largos e se colocou à sua frente, as mãos nos bolsos, o olhar fixo, perfurante.

- Pensando em quê? - A pergunta foi direta, como uma faca afiada. Ele inclinou-se sobre ela, como se exigisse uma confissão. - Pensando em fugir de mim? Abandonar tudo que lhe dei?

Ludmilla sentiu a garganta se fechar. Não era a primeira vez que Xamã insinuava que ela poderia estar querendo deixar o casamento. A ideia da fuga nunca tinha sido mais do que um sussurro em sua mente, mas ele parecia farejar qualquer sinal de resistência, qualquer traço de desespero em seus olhos. Ele a conhecia, ou melhor, conhecia o medo que ele próprio havia semeado dentro dela.

- Claro que não - ela respondeu, tentando soar convincente. - Eu só... estou cansada.

- Cansada? - ele repetiu com desdém. - Eu trabalho todos os dias para sustentar esta casa, para lhe dar o melhor, e você tem o luxo de dizer que está cansada?

O desprezo em sua voz fez Ludmilla estremecer. Ela sabia que aquilo não era sobre ela estar cansada. Ele nunca aceitava desculpas que não servissem ao seu propósito. E o propósito, agora, estava claro.

- Nós já conversamos sobre isso - ele disse, com um tom de voz mais baixo, mas ainda ameaçador. - Eu quero um filho. Não me interessa mais suas desculpas ou medos. Já se passou tempo suficiente desde o aborto.

O sangue de Ludmilla gelou. O aborto era uma ferida que ela jamais conseguia deixar cicatrizar, mas para ele, era apenas um obstáculo superado. Xamã nunca entenderia a dor que ela carregava. Para ele, a perda do bebê não significava nada além de uma falha em seus planos.

- Eu... não sei se estou pronta, Xamã - Ludmilla disse, a voz falhando, os olhos marejando com o peso do medo que a dominava. - Não sei se consigo passar por isso de novo.

O rosto de Xamã se endureceu, as sobrancelhas franzidas em impaciência.

- Você não tem escolha - ele murmurou, com frieza. - Eu não me casei para que minha esposa ficasse sentada, lamentando perdas. Eu quero um herdeiro, Ludmilla. E você vai me dar um.

Aquelas palavras caíam sobre ela como um golpe invisível. Ludmilla fechou os olhos, tentando conter as lágrimas. Ele a tratava como se fosse apenas um meio para um fim, como se sua dor fosse irrelevante. O amor que ela um dia pensou existir entre eles havia desaparecido, restando apenas o controle absoluto que ele exercia sobre cada aspecto da vida dela.

- E não pense que pode me enganar - ele continuou, aproximando-se ainda mais. - Se você tentar qualquer coisa para impedir isso, ou se eu sequer suspeitar que está tentando fugir, vai se arrepender. Não pense que eu não sei o que se passa na sua cabeça, Ludmilla. Você é minha. E eu não vou permitir que fuja.

Ela engoliu em seco, o medo cravado em seu peito. Qualquer vestígio de independência havia sido esmagado há muito tempo, mas o que a prendia agora era mais do que a dependência emocional ou financeira. Era o terror constante das consequências de desobedecer.

Xamã então se afastou, como se já tivesse resolvido tudo com aquela ameaça. Pegou um livro da estante e o abriu casualmente, como se o peso de sua presença pudesse ser aliviado por uma simples distração.

- Vamos começar a tentar de novo - ele disse, sem sequer olhá-la, virando as páginas do livro. - Amanhã.

Era uma ordem, não uma sugestão. E Ludmilla sabia o que significava. Toda vez que ele a forçava a tentar engravidar, era uma experiência fria, quase mecânica, como se ela fosse apenas uma peça no jogo de poder dele. Não havia mais afeto, se é que algum dia realmente houvera.

Ela não disse mais nada. Não havia o que dizer. Apenas ficou ali, sentada, com as mãos trêmulas apertando a xícara de chá. O cheiro de camomila, que um dia fora reconfortante, agora parecia enjoativo. Sua mente estava a mil, o pavor do que viria no dia seguinte crescendo dentro dela como uma sombra sufocante.

Quando Xamã finalmente saiu da sala, Ludmilla sentiu o peso do silêncio desabar sobre ela. Os corredores estavam vazios, mas dentro de sua mente, o caos reinava. Ela olhou para o relógio na parede, desejando desesperadamente que o tempo parasse. Mas ele nunca parava. E a noite seguinte viria, como sempre.

Ludmilla levantou-se lentamente, sentindo o peso de tudo o que Xamã havia imposto a ela, e começou a caminhar pelo corredor. As flores nos vasos luxuosos ao longo do caminho pareciam murchar sob sua tristeza. Mas ao dobrar uma esquina, ela avistou uma nova figura pela casa: Brunna, a jovem funcionária que havia chegado há pouco tempo. Seus olhos se encontraram por um breve segundo.

Havia algo na expressão de Brunna - uma mistura de curiosidade e empatia, algo que Ludmilla não via há muito tempo. Mas logo desviou o olhar, temendo o que qualquer conexão humana pudesse significar em sua vida isolada. No entanto, mesmo sem saber, aquele encontro silencioso plantou a semente de uma mudança que, mais cedo ou mais tarde, iria florescer.

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