MARIANA
Rute acariciava meus cabelos com cuidado, tentando me confortar. Era um gesto suave, quase materno, algo que fazia tanto tempo que eu não sentia. Aquilo trazia um pequeno alívio, mas não o suficiente para apagar a confusão dentro de mim.
— Vai ficar tudo bem, querida. — disse Rute, sua voz tranquila. — Logo você vai estar com sua família de novo.
A palavra "família" ecoou na minha mente de forma dolorosa. Eu sabia que ela não tinha como saber o quanto aquilo me atingia. Ela apenas tentava ser gentil.
Soltei um suspiro pesado e, sem pensar muito, deixei escapar:
— Eu não tenho mais família.
Senti os dedos de Rute pararem por um momento, como se ela tivesse se dado conta do que eu acabara de dizer.
— O que você quer dizer com isso, minha querida? — perguntou, com a voz baixa e cuidadosa.
Engoli em seco, tentando controlar a emoção que ameaçava me dominar.
— Eles morreram. Meu pai, minha mãe... e meu irmão. — Olhei para o chão. — Foi há dois anos, Rute.
Ela arregalou os olhos por um instante, chocada, como era de se esperar. Rute provavelmente pensava que eu estava fugindo ou separada da minha família, não que eu tivesse perdido tudo.
Eu esperei pelas palavras que sempre vinham nesses momentos. "Sinto muito pela sua perda", "Que trágico", "Deve ser muito difícil". Eu já estava acostumada a esse tipo de resposta e parte de mim já se preparava para ouvir novamente, mesmo sabendo que não mudaria nada.
— Você é muito forte, menina. — disse ela, depois de um longo silêncio. — Sobreviver a isso... não é fácil.
Levantei os olhos para ela. Não era a resposta que eu esperava. Não havia aquele típico "sinto muito", que sempre parecia vazio e sem sentido. Dei uma risadinha curta, sem humor.
— Você é a primeira pessoa que não diz "sinto muito" depois de ouvir isso.
Rute pareceu constrangida, abrindo a boca para tentar se desculpar, mas antes que ela pudesse falar algo, eu a interrompi.
— Isso é bom, Rute. — continuei. — Estou cansada de ouvir as mesmas coisas, sabe? As pessoas falam que sentem muito, mas não sentem de verdade. Elas só dizem porque acham que devem dizer isso.
Ela assentiu, me olhando de um jeito que mostrava que entendia o que eu estava dizendo.
— Posso imaginar o quanto deve ser difícil ouvir isso o tempo todo. — murmurou.
Dei de ombros, tentando afastar os pensamentos que me faziam querer chorar de novo. Rute parecia querer mudar de assunto, o que foi um alívio.
— E onde fica sua casa? — perguntou, com delicadeza.
Suspirei profundamente, sentindo o cansaço pesar sobre mim. A pergunta dela era simples, mas para mim, era como um labirinto.
Como explicar para alguém que eu estava a séculos de distância da minha casa? Que o lugar de onde eu vinha era um tempo completamente diferente daquele?
Eu não podia falar a verdade. Isso me levaria direto a um manicômio.
— Está longe. — minha voz saiu fraca. — Muito longe. — respondi, com um olhar vago. — Talvez... seja impossível voltar.
Meus olhos começaram a encher de lágrimas, mas pisquei rapidamente, tentando segurar o choro.
— Não se preocupe com isso agora. — disse Rute, me puxando de volta para a realidade. — Você está cansada, exausta. Primeiro precisa descansar. A casa do senhor Valente é o lugar perfeito para isso. Aqui, você vai se recuperar, eu prometo.
Olhei para ela, tentando acreditar em suas palavras. Ela parecia sincera, mas algo dentro de mim não conseguia aceitar completamente. Mesmo assim, assenti, sem forças para argumentar. Eu precisava descansar. Talvez, por enquanto, fosse o suficiente.
— Obrigada, Rute. — murmurei, sem muita convicção.
Nesse momento, percebi que a garotinha que eu havia visto antes estava ali novamente, parada no corredor, me observando com seus grandes olhos curiosos. Acenei para ela, forçando um sorriso que mal alcançou meus olhos.
A menina sorriu timidamente de volta e, em seguida, se escondeu.
— Quem é essa menininha? — perguntei, curiosa.
Rute suspirou suavemente antes de responder.
— É a Flora, sobrinha do senhor Valente. — explicou ela, seu tom agora mais sombrio. — A pobre menina perdeu os pais quando tinha quatro anos, em um incêndio. Desde então, o senhor Valente cuida dela.
Meus olhos se arregalaram com a revelação. Flora havia passado por uma perda tão terrível quanto a minha.
— Nossa... — murmurei, sem saber o que mais dizer. — Ela também sabe como é, Rute.
Rute me olhou com compaixão, e então disse suavemente:
— Você não está sozinha aqui, Mariana. Nós vamos cuidar de você.
— Obrigada... — disse, depois de um longo suspiro. — Mas é difícil acreditar que tudo vai ficar bem.
Ela sorriu levemente, me dando um olhar compreensivo.
— Não precisa acreditar nisso agora. — disse Rute, ainda suave. — Às vezes, leva tempo. Mas, devagar, você vai encontrar seu caminho de volta.
Fiquei em silêncio por um momento, permitindo que aquelas palavras se acomodassem dentro de mim. Talvez ela tivesse razão. Talvez eu só precisasse de tempo.
Eu encontraria a minha casa.
Deitei minha cabeça no travesseiro, fechando os olhos e tentando, pela primeira vez em muito tempo, relaxar.
O silêncio foi interrompido quando a pequena Flora entrou no quarto, segurando uma boneca nos braços.
— Posso ficar aqui? — ela perguntou, a voz baixa e tímida.
Rute sorriu, assentindo para ela.
— Claro que pode, meu anjo. Venha, sente-se ao lado da Mariana.
Flora caminhou lentamente até a cama e se sentou na beirada, olhando para mim. Ela parecia querer falar algo, mas hesitava.
— Essa é sua boneca? — perguntei, tentando puxar conversa.
Flora olhou para a boneca e depois para mim, assentindo.
— O nome dela é Clara. — disse, apertando a boneca contra o peito. — Ela é minha melhor amiga.
Sorri para ela.
— Clara é um nome bonito — murmurei, e Flora sorriu timidamente.
Rute observava a interação com um olhar carinhoso.
— Você sabe brincar com bonecas? — perguntou Flora, me surpreendendo.
Ri suavemente e assenti.
— Sei sim. Quando eu era pequena, eu tinha uma boneca parecida com a Clara, o nome dela era Bonita. Nós brincávamos de tomar chá e de cuidar das outras bonecas.
Os olhos de Flora brilharam.
— Você quer brincar comigo um dia?
O convite inocente e sincero me aqueceu por dentro.
Assenti lentamente.
— Claro que sim. Podemos brincar quando você quiser.
Flora sorriu largamente.
— Vocês duas vão se dar muito bem — disse Rute, antes de se levantar. — Agora, vamos deixar você descansar, não é, Flora?
Ela assentiu e se despediu com um aceno e saiu do quarto, me deixando com meus pensamentos e com um sorriso fraco nos lábios.
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Acordo com a Fera [Concluído]
عاطفيةTrilogia Paixões Rurais | #2 Mariana estava acostumada a perdas. Mas no dia de seu aniversário, ao fazer um simples pedido, sua vida vira de cabeça para baixo. Sem entender como, ela acorda em uma fazenda no ano de 1859, diante de um homem misterios...