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Quando o som ecoa pelo aeroporto, levanto a cabeça, e lá está: meu voo. Seguro a alça da mala rosa como se fosse um fio que me ancora, um peso que me impede de cair. Sigo em silêncio, passos lentos, até o embarque.

Escolhi uma janela, mesmo que me custasse mais. A vista do alto sempre foi minha pequena fuga. Colocar os fones, abrir a playlist, deixar o mundo lá fora - e por um instante, me sentir quase em paz. Quando as rodas começam a deslizar pela pista, aperto o play, e o avião, já pronto para partir, carrega comigo o peso de tudo que ainda não soube deixar.

Nos fones, a voz do MPB preenche o vazio:

"Naquela mesa ele contava histórias que hoje na memória guardo e sei de cor..."

E penso: será que alguém aqui sente essa música como eu? Não os que apenas cantam, mas os que realmente sabem, os que guardam essa dor como segredo. Sinto que carrego esse peso sozinha, como uma prece muda, e o pensamento irrompe, impronunciável: desejo que o avião caia.

Por um segundo, me imagino sumindo - eu e todos que amam alguém dentro desse avião. Quantos fariam como eu, colocariam fones de ouvido e desejariam a mesma coisa? Quantos repetiriam, como eu, um pedido silencioso: "Espero que o avião caia." E, antes que essa ideia se transforme, me repreendo, me perco de novo.

Olho pela janela, e algo em mim encontra uma estranha ironia - mais perto do céu, talvez eu esteja mais perto de você. Não sei se acredito em Deus, mas nesse céu que rasgo agora, me agarro à esperança vaga de que, se houvesse uma segunda chance, eu saberia te salvar. Nos pensamentos desconexos que só minha dor traduz, faço do silêncio uma língua que ninguém entende. Uma tentativa de organizar o caos, de inventar versos para o que não cabe em palavra.

Talvez isso não apague nada, mas nessa poesia torta, aprendo, aos poucos, a sobreviver ao que ficou de você em mim.

Me manter calma agora era como andar sobre o gelo fino. Respiro fundo, uma, duas vezes, tentando segurar o que insiste em escorrer dos olhos. Sei que, se uma única lágrima escapar, será o bastante para abrir todas as comportas. Num reflexo rápido, troco a música. Mas, ironicamente, parece que o universo tem seu jeito de me dizer o que não quero ouvir.

A voz nos fones canta suave:

"Depois de aceitarmos os fatos, vou trocar seus retratos por um de outro alguém."

Eu paro. Arranco os fones. E percebo que, talvez, qualquer som que eu ouvir agora vai ecoar como Michel, vai trazer sua sombra de volta, uma presença que, quanto mais eu fujo, mais insiste em me seguir. Fugir disso parece como tatear no escuro, à procura de uma saída que não existe.

Desligo os fones e busco uma distração, um refúgio. Abro a tela do avião e escolho um filme, uma comédia romântica, um clássico dos anos 2000: "10 Coisas Que Odeio em Você". Talvez seja o suficiente para quebrar esse ciclo, para dissolver a tensão que pulsa no peito e aliviar, ainda que por uma hora e meia, o peso de ser quem ficou.

É estranho como isso me acalma. Este é meu filme favorito, e, por uma hora, sou só eu e a tela. É como se, por um breve instante, a dor ficasse em silêncio. Uma paz temporária, mas que me abraça como um afago esquecido.

Desde criança, eu amava essa história. Enquanto as outras meninas se juntavam com suas Barbies, eu me sentava num canto, cabelo preso em um rabo de cavalo, acreditando ser Kat Stratford. Eu me achava tão diferente, tão independente, esperando pelo meu Patrick Verona, enquanto o mundo girava distante, cheio de risadas e bonecas alheias ao que eu sonhava.

Mas, aos poucos, as lembranças se esgueiram por entre os pensamentos e, desta vez, eu as deixo entrar. Se é para abrir a porta e encarar os rastros de Michel, que seja agora. Permito que as memórias venham, me atravessando em ondas calmas e intensas, como se, de alguma forma, nelas houvesse uma despedida que nunca terminei de dizer.

ei, saudades. Onde histórias criam vida. Descubra agora