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Na manhã seguinte, as aulas estavam prestes a começar. Puxo da mala de mão um caderno, novo, com capa lisa e sem nome. Comprei antes de sair de casa, impulsionada por aquela ideia de que escrever acalma a alma. Sento-me na beira da cama, apenas o abajur iluminando as páginas em branco. Aicha já está dormindo há um tempo, e do outro lado, Carl assiste a algum vídeo no laptop. Consigo ouvir só os murmúrios do som abafado, que me fazem companhia.

Escrevo sem parar, talvez de uma forma que só eu possa entender, tentando colocar no papel o que não consigo compartilhar. Recordo uma frase que ouvi num filme na TV, uma frase que ficou cravada em mim como verdade:

"Não lemos e escrevemos poesia porque é bonito. Lemos e escrevemos poesia porque fazemos parte da raça humana. E a raça humana está cheia de paixão." — Sociedade dos Poetas Mortos.

Quando sinto aquela leve dor no punho de tanto me derramar nas palavras, fecho o caderno devagar, quase num gesto ritual. Desligo o abajur, deixo a escuridão tomar conta do quarto e me deito, finalmente, com uma sensação de que os pensamentos estavam mais leves, prontos para me dar um pouco de paz.

Na manhã seguinte, sou acordada pelo sol que invade o quarto, como no dia em que Michel partiu. Mas, desta vez, o calor do sol parece um abraço, sem a dor daquele outro dia. Me sento na cama, vendo Aicha de pé, penteando os cabelos diante do espelho, concentrada e cuidadosa. Levanto-me sem dizer nada, pego a farda e encaro a camisa branca de botões e aquela gravata azul em formato de laço, um acessório que, confesso, me parece ridículo. Tento amarrá-la sozinha, mas sem sucesso. Aicha nota minha dificuldade, solta um sorriso e se aproxima.

— Lembro do meu primeiro dia — ela ajeita o laço, com mãos suaves e experientes. — Estava perdidamente perdida também!

Reviro os olhos, rindo um pouco. Talvez eu não estivesse perdida... Ou talvez estivesse, mas de uma maneira diferente.

— O Carl foi meu alívio cômico quando cheguei aqui — ela comenta, sorrindo com uma doçura que deixa o momento leve. — Espero que possamos ser o seu agora.

Ajeitada e pronta para o dia, dou um sorriso, talvez o primeiro verdadeiro desde que cheguei aqui.

— Vamos? — Aicha pergunta, num tom leve, enquanto segue em direção à porta.

Não sei onde fica nada, nem os corredores, nem a sala. Ontem à noite só cheguei da viagem e fui direto para o dormitório. Acompanhar Aicha é mais que necessário, e a ideia de seguir seus passos traz uma sensação de alívio.

Enquanto caminhamos pelos corredores com bancos de mármore, observo os alunos em todas as direções — rindo, conversando, discutindo, jogando — em um caos organizado que dá vida ao lugar. E, por um instante, parece que Aicha conhece todos. Sempre há alguém que para para cumprimentá-la, como se fosse uma pequena celebridade local. Talvez o jeito falante e espontâneo dela torne fácil conquistar amigos e atravessar as entrelinhas invisíveis do colégio.

A sala de aula é fria. Todos estão com seus moletons, suéteres ou blusas de manga, e percebo que ninguém me avisou que aqui a temperatura desafia qualquer tentativa de conforto. Me sento ao lado de Aicha e Carl, os únicos rostos familiares na multidão. Sinto meu braço tremer, e o frio é tão intenso que chega a ser cortante.

— Eles aumentam o ar no máximo para tentar matar os germes da professora de aritmética congelados! — Carl comenta, sempre com sua piada de sempre, que me arranca um sorriso leve.

Aicha solta uma gargalhada nada discreta, um som estridente e espontâneo que ecoa pela sala, chamando a atenção de todos por uns segundos. Mas o silêncio toma conta no momento em que a professora entra. Alta, de pele clara, com um semblante que transmite autoridade. O frio parece ganhar ainda mais presença, e agora o silêncio também é gelado, carregado de uma expectativa silenciosa, como se tudo ali tivesse sido enfeitiçado para se curvar ao seu olhar.

“Germes” — o sussurro escapa dos lábios de Carl, e eu mordo a língua, segurando o riso. Aicha, ao meu lado, está com o rosto contorcido, tentando prender a gargalhada. A professora se senta na mesa com uma expressão severa, e a turma toda abre os livros na página marcada, como se fosse uma coreografia ensaiada. Sigo o fluxo, ainda meio perdida, abrindo o capítulo quinze. Nada de especial, só o som de páginas virando e do silêncio pesado preenchendo a sala.

Assim que a professora sai, Aicha bate nas costas de Carl, que se contorce teatralmente.

— Ai! — ele reclama, rindo.

— Você quase me fez rir! Ela me mataria, Carl! — diz Aicha, com o rosto corado de riso contido.

Ele dá de ombros, com aquele sorriso que ele tem sempre guardado.

— Não tenho culpa se cada sílaba que eu digo é uma comédia pra você.

— Quem te disse que eu acho você engraçado?

— Ah, claro, então me explica por que você tá obcecada por mim.

Ela revira os olhos enquanto ele ri satisfeito. Pegamos os livros e saímos da sala juntos, rindo da aula e do ar condicionado absurdamente gelado. Olho para eles e me sinto um pouco mais conectada. Talvez seja isso o que eu precisava: sentir que ainda posso estar perto de alguém.

Enquanto andamos, lembro da cena de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, que assisti uma vez com Michel. A frase me atravessa de repente, como se tivesse ficado guardada todo esse tempo:

“Feliz é o destino da inocente vestal, esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida.”

Michel adorava essa parte. Ele sempre dizia que queria esquecer a parte ruim das memórias, mas que não queria esquecer a mim. Pensar nisso ainda traz uma dor branda, mas reconfortante. Com Carl e Aicha aqui, talvez eu consiga guardar só as lembranças boas, sem a ferida tão aberta.

ei, saudades. Onde histórias criam vida. Descubra agora