Meu reflexo no espelho me encara de volta, os olhos ligeiramente cansados, mas determinados. A jeito a gola do jaleco com um gesto automático. Sorrio, mas é um sorriso de fachada, que mal chega aos meus olhos. Respiro fundo, tentando focar no que tenho à minha frente. O hospital São Lourenço já faz parte de mim a anos. Os corredores brancos, o cheiro de desinfetante, o som dos monitores cardíacos ao fundo. Tudo isso me dá uma estranha sensação de segurança, mesmo nos momentos de maior estresse.
Mas hoje, algo está diferente. Sinto uma inquietação que não consigo explicar. Uma tensão no ar, como se o dia estivesse carregado de presságios. Tento afastar essa sensação, concentrando-me no que sei fazer de melhor: cuidar das minhas pacientes. Isso, ao menos, está sobre meu controle.— Mais uma consulta, Laura, e você pode ir para casa. — Falo baixinho para mim mesma, como se isso pudesse me acalmar. Sei que é mentira.
"Casa" não é o que me espera ao final do expediente. Não de verdade. O que me espera é uma noite longa, repleta de desafios e decisões difíceis. Mas ninguém pode saber disso. Aqui, sou Dra. Laura Mendes, ginecologista e obstetra, a profissional impecável, que as pacientes confiam de olhos fechados. Fora daqui, sou outra pessoa. Uma mulher que persegue justiça nas sombras, que enfrenta inimigos que a maioria nem sequer sabe que existem. E essa parte de mim tem pressa.
O celular vibra no bolso, interrompendo meus pensamentos. Um alerta discreto, mas claro. É Robson. Sempre ele, sempre no momento certo.
A mensagem é longa e codificada, como sempre, mas o significado é claro: L., precisamos agir. O alvo é a A.M. A questão é crítica e temos pouco tempo. Dessa vez vamos nos encontro no A.F.S. em 2h.
Meu coração acelera. Tráfico humano, mulheres desaparecendo sem deixar rastros, vendidas como mercadoria...
Não consigo deixar de pensar nisso enquanto atendo minhas pacientes. Cada uma delas poderia ser uma vítima, um rosto a ser esquecido nas estatísticas. Isso me atormenta.— Laura? — A voz suave da enfermeira me traz de volta para o presente. — Sua paciente está esperando na sala de exames.
Forço um sorriso, colocando de volta a máscara profissional. — Obrigada, já vou. — O tom de voz é firme, mas por dentro, estou dividida.
Sinto como se uma parte de mim quisesse largar tudo, sair correndo do hospital e começar a agir. Não posso ignorar o que Robson está me avisando.
Quando ele me chama, é porque a situação é urgente. Entro na sala de exames e cumprimento a paciente com meu sorriso treinado. Sou boa nisso, em fingir que está tudo bem. A consulta segue como qualquer outra, com perguntas, respostas, e orientações. Tento focar completamente, mas meu cérebro está a mil, antecipando o que vem depois. Ao mesmo tempo, sinto uma pontada de culpa. Essas mulheres confiam em mim para cuidar delas, mas minha cabeça está em outro lugar.— Está tudo certo com o bebê — digo, após o exame de ultrassom. O rosto da paciente relaxa, e me sinto aliviada por proporcionar a ela essa paz momentânea. Tento me concentrar nesse sentimento de satisfação, mas logo o perco.
Olho para o relógio enquanto ela sai. Cada minuto que passa me aproxima do momento em que terei que deixar de lado o jaleco e vestir minha outra identidade. A sensação de urgência cresce em mim, como uma tempestade se formando no horizonte.
Fecho a porta do consultório e encosto-me nela por um momento, respirando fundo. Parte de mim anseia por sair do hospital e seguir o chamado de Robson, enquanto a outra parte sente o peso do compromisso com minhas pacientes. É um conflito constante — ser médica e justiceira ao mesmo tempo. Mas hoje, a necessidade de agir fala mais alto.
Às 21:00...
Guardo alguns documentos na bolsa e já me preparo para ir embora, quando ouço passos se aproximando. A voz familiar de Santiago me interrompe.
— Não vai fazer plantão hoje? — Ele pergunta, com um sorriso habitual.
Viro-me devagar e o encaro tranquila, ele dirige o hospital com competência e, apesar de sua posição de liderança, sempre se mostrou acessível para a equipe.
— Não, hoje preciso resolver umas coisas fora do hospital. — Respondo com um tom leve.
— Entendo. — Ele faz uma pausa, pensativo. — O pessoal na emergência está sobrecarregado. Sei que você já fez muito hoje, mas, como sempre, sua ajuda seria de grande valor.
Sinto o peso da responsabilidade que ele carrega e o quanto ele confia em mim como parte da equipe. Santiago é um líder que sempre reconheceu o trabalho duro de cada um, e isso criou um laço de respeito entre nós.
— Eu sei que eles precisam, mas hoje não consigo ficar. — Respondo com sinceridade. — Mas qualquer outra coisa, pode contar comigo.
Ele acena positivamente, compreendendo. — Claro, sem problemas. Não se preocupe. Eu só gosto de saber que posso contar com você. A gente faz uma boa equipe.
Sorrio, sabendo que o que temos é uma parceria sólida, baseada no trabalho e na confiança. Santiago sempre foi claro sobre a importância de manter o ambiente de trabalho colaborativo, e eu respeito muito isso nele.
— E pode contar mesmo, Santiago. Nossa parceria no trabalho sempre foi ótima. — Digo com genuinidade.
Ele me devolve um sorriso amistoso. — Fico feliz em ouvir isso. Nos vemos amanhã, então.
— Até amanhã. — Despeço-me com leveza, saindo do hospital.
No estacionamento, retiro o jaleco com cuidado, dobrando-o cuidadosamente antes de deixá-lo no banco do carro. O dia foi exaustivo, mas rendeu bons resultados. Dou partida no carro e sigo para o encontro com Robson.
Durante o trajeto, meu celular toca. É Samuel.
— Oi, minha gatinha! Já está a caminho? — ele pergunta assim que atendo.
Reviro os olhos, mas não consigo conter um sorriso.
— Gatinha, Samuel? Só você mesmo. Estou indo... tchau! — desligo em seguida.
Guardo o celular e sigo adiante, um misto de ansiedade e determinação pulsando em mim. Com a visão do hospital desaparecendo pelo retrovisor, sinto a adrenalina subindo. Estou prestes a entrar em um mundo onde os desafios se multiplicam e a justiça é apenas uma palavra. Mas, por enquanto, um sorriso tímido permanece em meus lábios, uma lembrança de que mesmo nas horas mais sombrias, sempre há espaço para um pouco de luz.
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Amor e Justiça [ Dark Romance]
RomanceUm grupo secreto de justiceiros se levanta para trazer justiça àqueles que a lei não alcança. Essa organização, conhecida como Punho do Dragão, é composta por Robson, um advogado brilhante; Laura, uma médica determinada; e Samuel, um ex-policial com...