Cena 1: A Madrugada - Duda Salgado

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A noite pode esconder mistérios por trás do véu da escuridão. Abra bem seus olhos, pois todos os olhos da noite estarão virados para você.

—Vocês foram incríveis! — Aos risos na porta do restaurante — Vamos comemorar de novo na próxima semana! — Sabia que não tinha nada para comemorar na próxima semana e no final todos estariam ocupados. Já tinha sido um milagre reunir todos desta vez.

— Deborah você é a primeira a arrumar desculpas para não ir.

— Prometo não furar mais! — Mentira! Era introvertida e não gostava de sair frequentemente.

— Vamos te cobrar! Alguém está filmando isso?

— Sempre engraçadinha, não é Marcelle? Pode acreditar dessa vez. — Nem ela acreditava.

— Rir faz bem para a vida, Deborah.

— Enquanto vocês ficam rindo eu vou para casa. Meu dia começou cedo demais e já passou da minha hora de dormir.

— Já foi uma honra desfrutar da sua companhia durante tanto tempo.

— Sei, Tadeu. Também foi uma honra desfrutar da companhia de vocês ­— Deborah retribuiu sorrindo com abraços e beijos em todos.

Quando saiu já era tarde, por volta da meia-noite, em uma rua deserta, próxima ao centro da cidade. Deborah saía de uma confraternização sozinha. Apenas uma reunião de antigos amigos. Como o bar onde estava não ficava longe de casa, decidiu voltar andando. Havia bebido apenas duas taças de vinho rosé durante o jantar e estava alegre por rever pessoas tão queridas.

Ela usava um vestido de frente única esvoaçante e branco que deixava suas costas à mostra, iluminada apenas pela lua cheia e baixa. O drapeado era marcado na cintura com um cinto marrom largo, porém discreto. Seus passos apressados e firmes em um sapato de salto fino, que não era muito alto, ressoavam no chão de pedra quase no mesmo ritmo das batidas do seu coração. Ela estava ciente de que estava muito atrasada para chegar em casa, mas a conversa a fez perder a noção do tempo.

No trabalho, tinha entregue todas as linhas do seu novo conto para serem publicadas na semana seguinte na revista mais famosa da cidade. A vaga que conseguiu com muito custo. Enviava suas histórias todas as semanas para o email do editor-chefe. Após dois meses de insistência, ele deu uma chance a ela e ela não desperdiçou.

A ideia do tema a ocorreu apenas durante o almoço, mesmo que tivesse a semana inteira para isso. O branco a dominou por vários dias. Os problemas e afazeres ocupavam tanto tempo que não lhe deixavam respirar em busca de inspiração. Isso nunca tinha acontecido antes. Gostava de trabalhar nos temas semanas antes para que ganhasse tempo de revisar quantas vezes fossem necessárias.

Faltando duas ruas para chegar em segurança e a se acalmar, o relógio central soou a primeira das doze badaladas da noite. Deborah se sobressaltou e virou repentinamente. Apesar da escuridão pesada da noite, percebeu uma silhueta parada a poucos metros. O rosto dela era indecifrável. A sensação a trazia arrepios na espinha. Ele não se movia. Ela também estava paralisada.

Paralisada pelo medo, mal conseguia piscar os olhos. A segunda badalada a tirou do transe e a fez correr. Não se atreveu a olhar para trás. Deborah corria o mais rápido possível impulsionada pelo pesadelo que vivia naquela noite. Sem coragem alguma de olhar para trás e ver se a sombra a seguia.

Um momento de alívio lhe passou quando, ao virar a esquina teve a visão do prédio em que morava. As janelas do saguão no andar de baixo acesas esperando por ela. Seu pequeno apartamento no quarto andar com apenas um quarto, pouco espaço, mas o suficiente para uma solteira que gostava de ficar sozinha maratonando séries.

O momento acabou quando sentiu um longo e forte braço em sua cintura, freando seus passos e tirando seus pés do chão. O segundo decisivo que fez sua vida mudar. As batidas do coração voltam a errar o compasso. Um trapo úmido com odor agressivo foi posto em seu rosto fazendo seu mundo escurecer e desaparecer.

Acordou horas depois em uma sala desconhecida. Seus olhos embaçados não reconheciam o local. Suas mãos estavam atadas e sua cabeça girava. Quando percebeu, entrou em desespero tentando se libertar, mas todo esforço era em vão.

Olhou ao redor, mas não havia ninguém. Suspeitava que a figura sombria que corria atrás dela pela noite estava por trás daquilo. Não fazia ideia de quanto tempo estava ali nem se alguém havia dado sua falta.

Claro que não! Vão perceber quando eu não aparecer no trabalho segunda-feira. Hoje é sexta, todos estarão pensando que se afundou nas cobertas por todo o final de semana. Até lá, ela estará morta.

O som da chave na fechadura a fez voltar seus pensamentos para a porta. Ali estava a resposta de suas dúvidas e, também, o fim de suas esperanças. A porta abriu com um movimento rápido e a estranha figura sombria adentrou no recinto.

Parecia ser um homem alto, mas não tinha certeza devido à pouca luz que estava ali. Mal podia afirmar que era um homem. Seu rosto estava nas sombras, sua respiração era rápida e ofegante. Seu rosto estava na escuridão. Não era capaz de ver nada além da capa preta e longa que o envolvia e obscurecia seus traços. A voracidade com que ele chegou perto dela não foi comum tampouco. Transmitia um ar animalesco, selvagem, inumano. Ela pensou ser o seu fim, mas algo estranho aconteceu.

Ele parou.

—O que você quer de mim?

Silêncio.

— Responde! Eu tenho o direito de saber o que você quer de mim.

Silêncio.

— Você vai me matar?

Ele se aproximou.

Quando estavam cara a cara, ela sentiu um breve instante de calma inesperada. Ele, por outro lado, estava profundamente perturbado. O homem pode ver seus olhos azuis profundos e seu belo rosto que compõem uma fisionomia estonteante. Sem dúvida, era um homem atraente. Nada daquilo fazia sentido.

— Quem é você? — A falta de respostas a deixava ansiosa, mas também com raiva dele. Por que não falava nada?

Ela o questionava sobre seus motivos, sua identidade, escolha por ela. Ele grunhia e corria pela sala. Vez ou outra, gritava e balançava a cabeça em negativa. Parecia não saber falar ou se expressar.

—Por favor, por favor... — Deborah chorava.

Ela insistia nas perguntas, ele se enfurecia mais. Ela chorava ainda com as mãos atadas. Ele batia nas paredes nuas enquanto esEla implorava para se soltar.r solta. Ele não a ouvia mais.

O tempo corria sem pressa. Os segundos pareciam ter horas intermináveis. Ela o viu sacar uma pequena faca e sentiu as lágrimas rolarem soltas. Subitamente, ele começou a gargalhar sem motivo aparente, o que a deixou ainda mais assustada.

— Você é louco!

— Não!

Ela se assusta com a resposta dele e arregala os olhos. — Então por que?

— Eu vejo tu passá na minha frente todos os dia. Eu vejo tu e num gosto.

— Do que você está falando? — ele falava com uma dificuldade quase infantil. Era difícil compreender as palavras.

—Num gosto de tu. Num gosto.

— O que eu te fiz?

— Passô na minha porta e eu num gostei.

— E só porque eu passei na sua porta você se deu ao direito de me sequestrar e me ameaçar? Isso é loucura!

— Num é. Minha porta. Num gostei de você.

Claramente, eu possuía alguma deficiência e precisava de acompanhamento e medicação, mas não estava recebendo nada disso. Agora, Deborah corria risco de vida e não podia argumentar com ele. Não havia motivo para tudo aquilo. Era um puro delírio da cabeça dele. E agora?

— Me deixe ir embora e eu nunca mais passo à sua porta. Prometo.

— Não! Num posso.

— Está escuro, eu nem vi seu rosto direito, não vou te entregar.

— Num cunfio em tu. Cê é mau.

— Não, eu não sou. Você não me conhece. Vamos conversar, você vai ver que eu sou boa. Qual é o seu nome?

— Num tenhu nomi.

— Todos têm um nome. Como te chamam?

— Num tem nomi!

— Tudo bem, tudo bem. Então como você gostaria de ser chamado?

— Num quero!

— ENTÃO COMO EU VOU... Então como eu vou...

— Num quero! Num quero!

— Tá bom! Sem nomes. O que você faz aqui? Tem algum trabalho ou família? — Ela ganhava tempo e isso a dava clareza para pensar em uma solução.

— Eu só vejo as pessoa passando na minha porta e num gosto. Num tem ninguém e quero ficá sozinho.

— Você foi abandonado? — Ela estava incrédula. Como uma pessoa assim poderia ser tão sozinha no mundo?

— Num tem ninguém!

— Eu posso te ajudar. Conheço um lugar muito bom para onde você pode ir, conhecer gente nova. Pessoas iguais a você.

— Num quero. Eu fico sozinho aqui! Num gosto de gente nova.

Ele se aproxima com a faca na mão, olhos fixos nos dela. Parecia fascinado com a violência que fazia. Obcecado.

— Não, não, por favor, por favor...

A primeira facada desceu em seu ombro e a dor foi insuportável. Ela grita de desespero e chora ainda mais.

— Você quer me matar? Por quê? Eu não te fiz nada!

— Cala a boca! Eu mato, eu mato.

— Não me mate, por favor...

As próximas apunhaladas são rápidas e o sangue pinga violentamente. Ela perdeu os sentidos por alguns instantes, mas logo foi acordada pela figura sombria que a matava. Ele a queria consciente para participar dos horrores que cometia. Os cortes não eram profundos ou fatais. Apesar da fala demonstrar pouco conhecimento, ele sabia bem o que estava fazendo com aquela faca. Não é a morte imediata que ele busca. Ele queria a tortura. Isso o satisfazia.

— Dói demais. Se você vai me matar, faça isso logo. Não aguento tanta dor. — Deborah chorava e implorava pela vida. — Deixe-me ir embora.

— NÃO! Tu é minha.

Ela não tinha forças para lutar, estava perdendo sua vida sem entender o porquê. Sem saber o que tinha levado aquele homem a esse ato de loucura contra ela. Aquele homem estranho que ela mal conhecia. E que nunca a vira também, ou assim ela pensava. Um psicopata. Lunático. Ela teve o infortúnio de cruzar o caminho dele.

A poça de sangue no chão já estava enorme. Ela olhou para baixo fazendo com que as lágrimas se unissem ao vermelho que tomava conta de sua visão.

Agora também pode ver o psicopata sem nome passar a faca em sua barriga, dessa vez com mais força, fazendo a lâmina entrar mais fundo. Lentamente, via mais sangue escorrendo e suas tripas caindo. Sua respiração não era nada mais que um último sopro da vida que ainda existia. Morreria ali sozinha em um lugar desconhecido, sem chance de se despedir de sua família.

Seu pensamento estava longe quando ouviu uma porta se batendo acima de sua cabeça. Pensou que fosse delírio sem importância, mas uma voz calma e serena a trouxe de volta à realidade.

— Stefano, onde você está? Você está onde?

Então aquele obscuro ser tinha nome.

— Afinal você tem nome, Stefano.

— Calada!

Rindo descontroladamente, Deborah deixava-o mais irritado.

— Stefano?

— Acho que a mamãe está chamando você.

— Você quer morrer? — Aquele tom a assustou. Ele abandonara a fala cheia de erros e inexperiência e verbalizava normalmente. A máscara havia caído.

— Stefano, está no porão de novo? — A voz se mantinha calma enquanto abria a porta.

Era uma senhora bem apessoada e com refinamento. Cabelos brancos presos em um coque frouxo, calça de linho e camisa de cetim brancas e sapato de bico fino bege. Parecia alguém de posses e boa educação. Aquela alva visão de olhos azuis gentis contrastava com Deborah ensanguentada com o intestino caindo de seu estômago e a tez pálida.

— Socorro! Por favor, me ajude. Ele quer me matar. — A voz baixa era o melhor que suas forças conseguiam emitir.

Aquela senhora petrificada no umbral da porta mudou repentinamente ao sorrir para ela. Com a risadinha discreta, tomou um ar diabólico.

— Oh, querida... Stefano, termine logo e limpe essa bagunça. Ela faz muito barulho. — Virou as costas e bateu a porta atrás dele.

Nesse momento, Deborah viu seu último fio de esperança sumir. Ela aceitou a morte e chorou. Stefano pegou mais ferramentas e começou a remover cada uma das partes com profissionalismo.

Cortou os dedos das mãos. Abriu o abdômen e removeu os órgãos. Cada parte era colocada em um recipiente limpo com a solução conservante. O processo era muito cirúrgico.

Em algum momento da remoção, Deborah deu seu último suspiro sozinha e cercada por dúvidas. Mas com a certeza de que nada fizera para merecer aquilo.

Instagram:
@duda.salgado

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