Capítulo V - Lembranças que sangram

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Lembranças que sangram

Sento-me na borda da cama e sinto o peso do mundo desabar sobre meus ombros. Há algo sufocante no ar hoje, como se a saudade tivesse se tornado densa, algo quase palpável. Fecho os olhos, respiro fundo, e vejo o rosto dela. Aquela pele clara que, tantas vezes, contrastou com a minha, como luz e sombra em um quadro impressionista. Rita. Você é a minha arte inacabada, o poema que escrevi e que o mundo rasgou antes do final feliz.

Quando Rita foi embora, levaram com ela um pedaço de mim que eu nunca mais recuperei. Tento não pensar nisso, mas cada canto dessa cidade me lembra dela. Do sorriso dela, das palavras doces que me acolhiam como um lar em meio à tempestade. E ao mesmo tempo, me lembro do olhar de desprezo dos seus pais. Aquele olhar que nunca foi dito em palavras, mas que era mais afiado que qualquer insulto. Eu sabia. Eles sabiam. Para eles, eu era só mais um. Mais um garoto da periferia que ousou querer algo além da miséria que lhe foi destinada. Mais um preto que cruzou a linha invisível que nunca deveria ter cruzado.

Cresci aprendendo a engolir minha dor, a esconder meu medo. "Seja forte, Alex. Seja sempre mais forte que eles." Era o que minha mãe dizia, enquanto lutava para colocar comida na mesa. Mas o que ela não sabia é que às vezes, a força precisa ceder lugar à vulnerabilidade, ao direito de sentir, de sofrer. E com Rita, pela primeira vez, eu me permiti ser frágil.

Eu lembro do toque dela, suave como o som das ondas quebrando na praia ao amanhecer. Mas havia um abismo entre nós, e esse abismo não foi criado por nossas mãos, mas pelas mãos do preconceito. Eles diziam que nosso amor era um erro, um desvio. Mas o que eles nunca entenderam é que o nosso amor era a resistência, era o grito silencioso de gerações que vieram antes de nós.

Eu me pergunto como ela está agora. Será que Nova York a faz esquecer de tudo? Será que lá, entre prédios altos e ruas movimentadas, ela consegue se livrar das lembranças? Eu tento. Tento todos os dias apagar o gosto do seu beijo, o calor do seu corpo contra o meu. Mas é inútil. É como tentar apagar um incêndio com um sopro. Quanto mais tento, mais a saudade se inflama dentro de mim.

Recebi uma mensagem da Carla, ontem à noite. Ela me contou que Rita está voltando para o Brasil. Por um segundo, senti uma alegria que não sentia há tempos. Mas logo, a dor veio como uma avalanche, esmagando qualquer esperança. Porque eu sei o que espera por nós aqui. O mesmo preconceito, a mesma intolerância, as mesmas barreiras que sempre nos impediram de ser quem queremos ser.

Olho para o céu nublado, e tudo que consigo pensar é como nossa história se parece com essa tempestade iminente. Há uma beleza trágica nas nuvens pesadas, na promessa de chuva. Uma chuva que pode lavar nossas dores, ou nos afogar de vez. E eu estou cansado de lutar contra a maré. Estou cansado de ter que provar o meu valor, de ter que ser mais, apenas para ser visto como igual.

Mas o amor que sinto por ela ainda está aqui, intacto, puro, apesar de tudo. Eu a amo como um pássaro ama o céu aberto, mesmo sabendo que há gaiolas esperando por ele. E por mais que minha mente grite para eu desistir, meu coração insiste em bater seu nome.

Fecho os olhos e me vejo de volta àquela praia. Eu e ela, deitados na areia, sem promessas, sem rótulos, apenas o nosso amor, livre e verdadeiro. "Eu queria passar o resto da vida aqui com você," eu disse. E eu quis. Eu ainda quero. Porque apesar de tudo, você ainda é o meu lar, Rita. Mesmo quando o mundo nos diz que não devemos estar juntos, eu sei que meu lugar é ao seu lado.

E talvez, só talvez, o amor possa vencer dessa vez.

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