Capítulo VI - Cicatrizes invisíveis

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Cicatrizes invisíveis

Eu sabia que algo estava errado no instante em que cruzei a porta daquela casa. A opulência no ambiente não mascarava o clima gélido que pairava no ar. Eu era o intruso, o erro que insistia em se fazer presente num mundo onde eu não era bem-vindo. Mas ali estava eu, segurando a mão de Rita, tentando me convencer de que o nosso amor poderia suportar qualquer coisa.

— Alex — o pai dela começou, sorrindo daquele jeito que nunca alcança os olhos. — Vamos direto ao ponto, sim? Estamos aqui para discutir o futuro da nossa filha.

Eu apertei a mão de Rita, buscando segurança, mas o suor frio escorria pela minha nuca. Eu sabia que aquele jantar não era sobre um futuro compartilhado. Era sobre eles arrancarem qualquer esperança que eu ainda tinha. Eles não precisavam dizer, eu já podia sentir o peso do desprezo que carregavam.

— Tudo bem — eu disse, tentando manter a voz firme, apesar do nó na garganta. — O que vocês querem saber?

A mãe dela olhou para mim com aquele sorriso gélido, os lábios pintados de vermelho, combinando com o veneno que se preparava para destilar. Ela colocou um colar em cima da mesa, uma joia que brilhava tanto quanto o ódio em seu olhar. Eu reconheci o colar. Era da galeria deles. Eu tinha visto dias atrás.

— Rita — a voz dela era doce, mas havia uma crueldade ali, escondida sob a superfície. — Você sabe o que é isso, não sabe? Esse colar desapareceu ontem da nossa coleção. E encontramos... nas coisas do Alex.

O mundo parou. Por um segundo, eu não consegui processar. Era uma mentira descarada, mas o choque foi tão grande que me deixou sem palavras. Olhei para Rita, esperando ver descrença em seus olhos, mas o que encontrei foi incerteza. Uma incerteza que rasgou meu peito como uma lâmina.

— Isso não é verdade — eu disse, a voz trêmula, mas sem hesitar. — Eu nunca tocaria nisso. Você sabe quem eu sou, Rita. Você sabe que eu jamais faria isso.

Ela deu um passo para trás, os olhos marejados, me encarando como se não me reconhecesse.

— Alex... você pegou isso?

A dor que senti naquele momento não era física. Era como se meu coração estivesse sendo arrancado, pedaço por pedaço, com cada palavra de dúvida que escapava de seus lábios. Eu respirei fundo, tentando manter a calma.

— Claro que não, Rita. Você sabe que isso é uma armação.

O pai dela bateu na mesa, a expressão fria como o gelo.

— Você acha que tem algum direito de estar aqui, Alex? Você acha que merece a minha filha?

Eu o encarei, com o sangue fervendo nas veias, mas sem poder gritar. Era o tipo de guerra que eu não poderia vencer com palavras. Eles já haviam decidido o que eu era. Para eles, eu era o garoto da periferia, o homem negro que jamais seria digno da princesa que eles criaram. Não importava o quanto eu amasse Rita. Não importava o quanto nós tínhamos construído juntos.

— Rita — ele continuou, num tom que pretendia ser paternal, mas transbordava desprezo. — Você realmente quer passar sua vida com alguém que não consegue nem sustentar a si mesmo, quem dirá a você? Alguém que precisa roubar para se manter?

— Isso não é verdade! — eu gritei, finalmente perdendo o controle. — Vocês estão mentindo! Isso é uma armação para me afastar dela!

A mãe de Rita suspirou, como se estivesse cansada de brincar.

— Nós poderíamos esquecer isso, Alex. Poderíamos deixar você ir embora em paz... Se você aceitar se afastar da nossa filha. Podemos te oferecer dinheiro. Podemos garantir que sua família não precise mais se preocupar com nada.

A oferta me atingiu como um soco. Eu senti o gosto amargo da humilhação subir pela minha garganta. Não era só sobre me afastar de Rita. Era sobre comprar a minha dignidade, sobre reduzir meu amor a uma transação barata. Olhei para Rita, buscando algum sinal de que ela ainda estava comigo, que ela sabia a verdade. Mas tudo o que vi foi o medo, a dúvida, a hesitação.

— Você acha que isso é sobre dinheiro? — perguntei, minha voz carregada de amargura. — Eu nunca quis nada de vocês. Eu só quero ela. Mas, pelo jeito, vocês a possuem também, não é? Vocês a possuem como possuem esse colar, como possuem tudo ao redor.

Ela cobriu o rosto com as mãos, soluçando baixinho.

— Alex... Eu não sei o que pensar.

Meu coração se partiu ali mesmo, naquele instante. Porque eu sabia que eles tinham vencido. O veneno havia se espalhado, corroendo o amor que tínhamos, destruindo a confiança que eu pensava ser inabalável.

Sem mais uma palavra, me levantei. O silêncio que se seguiu era quase ensurdecedor. Caminhei até a porta, sentindo o olhar triunfante dos pais dela queimando em minhas costas. Mas antes de sair, me virei uma última vez.

— Eu espero que você entenda um dia, Rita — eu disse, minha voz agora apenas um sussurro quebrado. — Espero que você veja o que realmente aconteceu aqui.

E então, saí. Cada passo parecia pesar uma tonelada, como se eu estivesse deixando para trás uma parte de mim que nunca mais seria recuperada. Lá fora, a noite estava fria, mas o frio que senti vinha de dentro. Eu não sabia para onde estava indo. Só sabia que precisava me afastar da dor, da traição, do racismo que havia destruído o que nós tínhamos.

Caminhei pela rua, sem rumo, sentindo as lágrimas finalmente caírem. Mas não eram lágrimas de tristeza. Eram de raiva. De impotência. Porque o racismo não destrói apenas o amor. Ele destrói a alma, deixa cicatrizes profundas que o tempo não consegue curar.

E eu sabia, no fundo do meu peito dilacerado, que aquela noite havia mudado tudo para sempre.

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