𝐧𝐢𝐜𝐡𝐨𝐥𝐚𝐬 𝐜𝐡𝐚𝐯𝐞𝐳 - 𝙞𝙢𝙖𝙜𝙞𝙣𝙚𝙨 / 𝙤𝙣𝙚𝙨𝙝𝙤𝙩𝙨

𝐂𝐇𝐀𝐑𝐋𝐈𝐄 𝐌𝐀𝐘𝐇𝐄𝐖 (𝐃𝐎𝐂𝐓𝐎𝐑)

"Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar." - William Shakespeare

Quando eu era pequena, via meu pai como o herói que desvendava mistérios que ninguém mais conseguia ver. Os olhos dele tinham um brilho sagaz, e as histórias que contava eram como filmes de aventura para mim. Eu imaginava que, assim como ele, eu também poderia seguir as pistas escondidas no cotidiano, resolver mistérios e proteger pessoas.

O mundo parecia cheio de segredos à espera de alguém disposto a descobri-los, e eu mal podia esperar para vestir meu próprio "chapéu de detetive", como ele chamava, e investigar o desconhecido ao lado do meu maior exemplo.

Mas essa cidade... está apodrecendo, e cada esquina parece se transformar com o peso da noite, esmagando qualquer esperança que tente sobreviver ao amanhecer. Os becos, antes caoticamente familiares, agora exalam uma frieza que não reconheço, sussurrando segredos obscuros, como se escondessem histórias que nenhum detetive poderia desvendar completamente. Há uma tensão no ar, atravessando paredes e chegando a mim como um aviso abafado, uma premonição. A cada instante, algo parece prestes a emergir das sombras, pronto para devorar a vida que ainda resiste nas pessoas, como uma força invisível se alimentando da angústia e insegurança de cada um de nós.

Talvez seja essa mesma escuridão que me atraia para ele, para Charlie Mayhew. Médico, impassível, com uma paciência afiada e olhos tão intensos que, às vezes, me fazem esquecer onde estou. Charlie é minha única âncora nesse caos, ainda que a nossa ligação seja um segredo sórdido. Ele é uma sombra familiar nesse mundo sufocante, alguém que compartilha comigo uma chama intensa e perigosa, como um vício que não consigo largar.

Charlie Mayhew é um filho da puta metido, e eu sei disso. Todo mundo sabe disso. Ele anda pelo hospital como se fosse dono do lugar, com aquele jaleco impecável, o cabelo meticulosamente bagunçado e os olhos cinzentos que parecem nunca se comprometer com nada.

Ele sabe o poder que tem nas mãos - não apenas pelo título de médico, mas porque controla as pessoas como bem entende. Ele manipula, usa, descarta, tudo com um sorriso frio e uma voz firme que não deixa margem para dúvidas. Ele é um predador, um anjo disfarçado de demônio.

E mesmo assim, lá estou eu, me deixando envolver cada vez mais nesse jogo dele, como se fosse imune ao veneno. Nossas noites juntos são intensas, explosivas e, sem exagero, tão caóticas quanto essa cidade. Ele é meu escape, a minha fuga de uma realidade que está desmoronando. Mas sei que estou me prendendo a ele por todos os motivos errados. Quando estamos a sós, entre paredes que guardam segredos, tudo nele é brusco, perigoso, envolvente, como se quisesse me consumir - e eu deixo.

A nossa relação é um tipo estranho de dependência, quase um vício. Ele me trata como mais um caso qualquer, mas há uma intensidade na forma como me prende que me faz voltar, como se soubesse exatamente o quanto pode me ferir e ainda assim me fazer querer mais. Nós dois somos como uma tempestade prestes a desabar; sabemos que nada de bom pode sair disso, mas nos agarramos a essa loucura de qualquer jeito.

A cidade está podre, e eu estou no meio dela, deixando que ele me envenene pouco a pouco, como se ele fosse a minha cura - e a minha condenação.

O hospital estava mergulhado num silêncio quase ensurdecedor àquela hora da noite, com o cheiro esterilizado que me fazia prender a respiração sempre que passava pela porta giratória. Eu caminhei ao lado de Lois, tentando acompanhar seu passo decidido. Ela era um mito entre os detetives, minha mentora e, em noites como aquela, uma espécie de bússola para mim. A cada piscar das luzes brancas do corredor, sentia que algo ainda mais sombrio do que o normal estava nos esperando ali dentro. Algo que, mesmo sem saber, eu estava ansiosa para encarar.