Interlúdio: De Segunda para Terça

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Ishin se mantém estático enquanto a pessoa do lado de fora insiste em bater contra o vidro, chamando por ele. São toques simples, como quem bate em uma porta à espera de ser atendido. Ishin percebe que as batidas vão ficando mais ansiosas, o espaço entre elas mais curtas e mais impacientes.

— Senhor Gonçalves? — o homem chama.

Ishin, acuado na parede, consegue sentir o quão acelerado seu coração bate. Sente o tremor de suas mãos e como sua pele pinica, o quão frio sente seu corpo. Ishin nota que o sujeito começa a puxar algo de dentro de sua roupa. Suas entranhas parecem ser mergulhadas em um balde com gelo, se sobrecarregando de medo. Se preparando para o pior e suas pernas prontas para correr para a cozinha.

— Ishin, pode ficar tranquilo — o sujeito fala. — Estou tirando apenas uma carteira. Peço que se acalme, por favor.

A mão do estranho sai de dentro das roupas e prensa contra o vidro a carteira.

— Presumo que está com medo — o estranho diz, com uma voz trêmula, como se falar aquelas palavras custasse muito de suas energias. — Presumo que passei uma ideia errada e peço perdão. Me chamo Rafael. Rafael Ali. Fui enviado aqui pelo Castelo de Ébano. Conhece eles, correto? O shopping. Faço parte de um setor administrativo da empresa e gostaríamos de falar com você sobre uma oportunidade de emprego.

O absurdo daquelas palavras pegam Ishin de surpresa. Parte de sua ansiedade se dissipa só por não saber como prosseguir e os questionamentos surgindo. Afinal, qual era a lógica disso? De um estranho vir falar com ele de noite sobre uma "vaga de emprego". E na saída de seu emprego, já tendo passado o horário comercial.

De fato, Rafael não teve a melhor das ideias no que diz respeito a abordagens.

Ishin se aproxima apenas o bastante para conseguir ver o documento através do vidro, usando da lanterna do celular para iluminar o documento exposto. Ainda atento aos movimentos do tal Rafael, ainda desconfiado e cheio de receios. Ishin identifica um crachá da Castelo de Ébano, a foto é do mesmo sujeito do outro lado do vidro, seu nome está ali.

Por mais que não haja nada que dê a entender que aquele crachá seja falso, ainda é apenas um crachá padrão da empresa, um cartão de plástico com um grampo de metal para prender na roupa, e Ishin não entende como mostrar aquilo deveria melhorar a situação. Ainda é no meio da noite e nada daquilo faz sentido! O que fazer com essa informação? Do tal Rafael ser um representante da Castelo de Ébano! É uma mega empresa. Ishin sabe que existem várias lojas e marcas de diversos setores debaixo da asa da Castelo de Ébano. Eles até tem um shopping cidade com várias de suas lojas!

— E o que você quer? — Ishin tenta soar valente, mas sua voz ainda é recheada de pavor, e agora de confusão.

— Bem, é para perguntar se você gostaria de uma vaga de emprego (bastante única, devo dizer) dentro da Castelo de Ébano, como eu disse. Conhece a empresa, presumo. E posso te dar os detalhes da vaga e, caso se interesse, agilizar sua contratação. — Rafael guarda a carteira. — Presumo também que gostaria de terminar de fechar o estabelecimento. Peço mil desculpas pela abordagem, não tive o intento de lhe assustar.

Ishin dá um sorriso amarelo, não tem muito por onde fugir.

— Ah, bem... Verdade. Preciso. Sim, preciso terminar de fazer isso. — Ele dá as costas e começa a conferir o estado do lugar, enquanto pensa no que fazer.

Ele entra na cozinha, nervoso. Começa a andar em círculos e a bufar. Não quer ficar ansioso de volta, mas tudo isso é estranho, logicamente muito estranho. E parte sua tem vergonha de ligar para a polícia e fazer eles virem até ali. Talvez o sujeito vaze e Ishin se encontre sozinho tendo que explicar aquilo para policias! Tem medo de ser desagradável com Rafael e a polícia... E se ele só quiser dar um emprego para ele e daí Ishin nunca mais um em qualquer ramo da Castelo de Ébano? Ishin choraminga só de pensar. Nada faz sentido e tudo lhe enche ou de confusão ou de desespero.

"E ele tem um carro, sair correndo não daria certo!"

— Certo, já sei o que fazer! — ele diz isso, bastante convicto.

Ishin agilmente leva a mão até o bolso de sua calça e puxa algo dali: seu celular! E, usando de sua internet 4G, ele envia uma mensagem para Alessandra!

Ele fica atento a barulhos vindo de fora e começa a digitar. Ele pede desculpas por infortuná-la, mas relata o que está acontecendo, toda sua situação, informando o que deve ser feito caso ele pare de mandar mensagem ou não dê sinal de vida. Nem Alessandra e tampouco Ishin entendem porque o tal Rafael veio oferecer uma vaga para ele a essas horas, se essa história for verdade.

Ishin, infelizmente, é um bom garoto, e decide dar o benefício da dúvida. Ele termina de fechar o restaurante e sai dele, ficando de frente com Rafael.

— Peço perdão por ter demorado — Ishin pede, envergonhado.

— Não existe necessidade de se desculpar. Eu que peço perdão em abordá-lo de forma tão tola — Rafael diz, ajeitando seu casaco e dando dois passos para trás conforme Ishin sai de dentro do estabelecimento.

E após finalmente ficar de frente ao sujeito, Ishin se sente um pouco mais tranquilo. Poder ver um rosto, de expressão amigável, é bem menos intimidador do que um vulto misterioso na escuridão. Mesmo que ainda com receios, Ishin sente aquela ansiedade galopante se amenizar em seu coração. O próprio Rafael sente um peso ser tirado de suas costas, subitamente, e se sente mais tranquilo. Conseguiu retomar as rédeas da situação. Ele sorri para o Ishin, estendendo-lhe a mão.

— Prazer em lhe conhecer, senhor Gonçalves. Posso lhe conceder uma carona até sua casa, caso deseje. — A mão de Rafael se dirige na direção de seu carro. — Afinal, as noites têm sido perigosas nesses tempos.

No relento das noites — tão perigosas — Leone está enrolado em uma manta maltrapilha. Ele está no início da esquina, enquanto os demais estão no fundo do beco, já dormindo. Sem conseguir pegar no sono pelos ventos tão frios que parecem afiados, Leone olha para o céu noturno e sua mente se abstrai, fantasiando dias melhores. Um devaneio que mistura um passado nostálgico e com um futuro utópico.

Subitamente seus olhos são cegados pelo farol de um carro preto que para à sua frente. O motor ronronando de modo convidativo. O carro chegar tão devagar e parar chama a atenção ainda com faróis acesos de Leone, que não levanta, mas fica pronto. Preparado para agir, caso necessário, nem que fosse para correr e berrar alertando seus colegas. Adrenalina já o prepara para possibilidades ruins.

Seu primeiro espanto vem com o fato de que, apesar do vidro fumê, consegue ver que o motorista tem algo estranho cobrindo o rosto.

"Aquilo é uma máscara de bichinho?", Leone se pergunta, em um misto de choque cômico e preocupação.

A janela do carro desce, e uma mulher de pele escura em belas roupas lhe direciona o olhar. — Leone, não é? — Ela se debruça contra a janela, oferecendo-lhe um pacote de balas.

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⏰ Última atualização: 3 hours ago ⏰

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