XXI

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Romênia, Transilvânia, 1453 d.C.

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Eram os anos de 1435 talvez menos...talvez mais as memórias me eram embaçadas...mas daquela em específico eu me lembrava bem.

Eu tinha cerca de oito anos na época, pequena demais para entender o peso das histórias que meu pai compartilhava, mas velha o suficiente para sentir a profundidade em sua voz quando ele falava. Sentávamos junto à lareira do castelo, a luz tremeluzente das chamas lançando sombras dançantes nas paredes de pedra. Ele gostava de falar sobre o passado durante essas noites silenciosas, e, por algum motivo, eu sempre o ouvia com atenção incomum.

— Vampiros não sonham, Marília, — ele disse certa vez, sua voz grave e serena, com um leve toque de melancolia.

Eu me aconcheguei mais perto, puxando o manto ao redor de mim para afastar o frio do inverno que se infiltrava mesmo ali dentro.

— Por quê? — perguntei, franzindo a testa, minha mente infantil tentando compreender o que isso significava.

Ele sorriu para mim, aquele sorriso que não chegava aos olhos, mas era cheio de um tipo estranho de carinho.

— Porque não temos o direito de sonhar. Os sonhos pertencem aos vivos, àqueles que ainda têm esperança. — Sua mão grande e fria afagou meus cabelos enquanto ele continuava. — Mas, às vezes, encontramos algo que é mais perto de um sonho do que qualquer coisa que possamos imaginar.

— Como o quê? — Eu inclinei a cabeça, curiosa.

Ele hesitou por um momento, como se estivesse mergulhando nas profundezas de memórias antigas. Então, começou a contar uma história que eu nunca esqueceria.

— Era uma noite de primavera, e eu estava vagando pelas florestas ao redor do vilarejo. Havia acabado de... — Ele parou, escolhendo as palavras com cuidado. — Digamos que eu havia terminado algo importante.

Eu sabia o que ele queria dizer, mesmo que ele não dissesse explicitamente. Ele sempre era cuidadoso ao falar sobre a sua natureza.

— Estava escuro, mas o cheiro das flores estava no ar, especialmente o das rosas. E então, eu a vi.

Eu me ajeitei no assento, os olhos brilhando de expectativa.

— Ela estava no meio de um campo, colhendo flores sob a luz da lua. Uma mortal, tão humana quanto qualquer outra. Mas, de alguma forma, diferente.

— Como? — perguntei, fascinada.

— Ela não teve medo de mim, — ele respondeu, a voz cheia de uma mistura de admiração e tristeza. — A maioria corre ou grita quando percebe o que eu sou. Mas ela... Ela apenas olhou para mim, como se pudesse enxergar algo além do monstro.

Ele fez uma pausa, e eu pude ver que seus pensamentos estavam longe, muito além do presente.

— Ela se aproximou de mim, segurando uma rosa. Não sei por que não a impedi, mas lá estava ela, oferecendo-me a flor como se eu fosse algo digno de um gesto tão puro.

— Você aceitou? — perguntei, já antecipando a resposta.

— Sim, — ele disse suavemente, com um pequeno sorriso. — Aquela rosa foi o início de tudo.

Ele continuou a história, descrevendo como eles começaram a se encontrar em segredo, como ela o fazia sentir algo que ele pensava ser impossível.

— Há uma lenda, Marília, — ele disse, olhando para mim com seus olhos profundos e intensos. — Que cada criatura foi feita para ter um par. Até mesmo vampiros.

— Um par? — eu ecoei, tentando entender.

— Alguém que nos veja pelo que somos, não pelo que parecemos ser. Alguém que possa amar a ferocidade da nossa alma e, ao mesmo tempo, trazer à tona o pouco de humanidade que ainda resta.

— Ela era seu par...era a mamãe...não era?— eu disse, afirmando mais do que perguntando.

Ele assentiu lentamente com os olhos marejados.

— Sim, ela era. Ela era minha rosa...aquela que persistia...

Mas o sorriso dele desapareceu, substituído por uma sombra de dor.

— Mas a vida é cruel, minha pequena. E a felicidade, especialmente para os nossos, é sempre breve.

Eu fiquei em silêncio, esperando que ele continuasse.

— Nós éramos de mundos diferentes. Eu sabia disso, mas mesmo assim, tentei segurá-la. Mas a mortalidade é implacável. — Sua voz ficou mais baixa, quase inaudível. — Ela adoeceu. Algo que eu não podia curar, não importava o quanto tentasse...e eu não podia condená-la...eu não podia transformá-la no que eu sou...

Eu olhei para ele, tentando imaginar o que ele sentiu ao perdê-la.

— E por isso a mamãe morreu papai?

Ele assentiu.

— Sim, e com ela, o pouco de sonho que eu tinha.

Ele ficou em silêncio depois disso, perdido em pensamentos. Eu também fiquei, pensando em como era possível alguém tão poderoso como meu pai ser tão vulnerável ao amor.

Finalmente, ele falou novamente, a voz suave.

— Marília, você é jovem demais para entender agora, mas um dia, encontrará algo que será como um sonho para você. Algo que valerá cada risco, cada sacrifício. Apenas lembre-se: não deixe o medo tirar isso de você.

Eu assenti, mesmo sem entender completamente o que ele queria dizer.

Décadas se passaram desde aquela conversa, mas as palavras dele nunca me deixaram. E agora, enquanto olhava para Maraisa, adormecida no divã, algo clicou dentro de mim.

Ela era minha rosa.

O pensamento era avassalador, mas inegável. Maraisa, com todas as suas cicatrizes, sua força e vulnerabilidade, era a coisa mais perto de um sonho que eu jamais poderia ter.

Aproximei-me dela, ajustando o cobertor ao redor de seus ombros.

— Vampiros não sonham, — murmurei para mim mesma, lembrando as palavras do meu pai. — Mas você, Maraisa... você é o mais perto disso que eu já estive.

E, pela primeira vez em séculos, senti algo que poderia ser esperança.

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