Alexandra apertou as mãos em torno da caneca fumegante. Sorveu o líquido negro rapidamente, ingerindo o calor antes que ele se extinguisse. Uma parcela ínfima, mas satisfatória, de alívio pelos segundos em que conseguiu afastar o enregelar dos dedos e de todo o resto do organismo, causado pelo intenso frio.
Quando terminou, suspirou fundo. A fumaça escapou dos lábios, deixando neles um quase sorriso.
Não que fosse o tipo de pessoa amarga, depressiva ou pessimista. Era apenas... Orgulhava-se de ser, na verdade. Realista. Absoluta e totalmente prática.
Do tipo que não se apega – sequer cogita – a coisas que não sejam palpáveis. Uma sobrevivente. Forte, firme e, acima de tudo, racional. Adaptada às intempéries de um tempo em que a escuridão é material, e não apenas subjetiva.
Largou a xícara em cima da mesa com cautela. Aproveitando o restinho de vela – que chegando ao fim trepidava –, aproximou o rosto da janela e, com a ponta do casaco de lã, limpou o vidro embaçado antes de aventurar o olhar no breu. Forçou os olhos a vislumbrarem o pequeno ponto de luz que se erguia solitário acima de todas as janelas da Cidade Alta – sempre o último a se extinguir.
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Sofia não se recordava de haver passado uma ocasião sequer sem insônia. Mesmo ainda muito pequenina, jamais havia conseguido cumprir a quantidade de horas que o senso comum dizia ser necessário dormir.
Se é que, depois de tudo, senso comum ainda fosse algo que merecesse ser ouvido...
Sofia não se lembrava da bola brilhante que costumava arder no céu – nem chegara a conhecê-la. Nunca a tinha visto. Mas os livros... Vários deles diziam que o sol realmente havia existido. Uma época em que o tempo se dividia, repartido entre claro e obscuro. Luz e escuridão. Noite e dia.
Livros proibidos, lógico. Do tipo que Sofia conseguia de forma clandestina, devorava e escondia debaixo das tábuas do assoalho para que os pais não descobrissem.
Letras, palavras e frases que, juntas, pareciam formar nela sentimentos e questionamentos responsáveis, em grande parte, pela falta de sono e isolamento. E que a faziam... Lutar contra si mesma. Os olhos procurando algo no breu lá embaixo, enquanto a chama da vela se extinguia. Os pés descalços, apesar dos dedos ficarem dormentes e os ombros e o pescoço se encolherem debaixo do sobretudo pesado e do cachecol de lã vermelha.
A ponto dos músculos reclamarem, doloridos pela tensão que o toque gélido da madeira produzia. O que procurava? O que desejava? O que realmente queria? Mesmo se tentasse, Sofia não saberia responder. Nem poderia. Era algo totalmente irracional, desprovido de sentido. Mas que a fazia sentir-se viva.
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As badaladas do sino da Casa do Senhor encontraram os olhos de Alexandra já abertos. Fato que, por si só, não fazia diferença. Impossível enxergar um palmo que fosse antes de acender uma vela, um lampião ou um candeeiro. Ela não se importava. Na verdade, estava muito mais do que acostumada. Sequer sabia como era ter luz sem que ela fosse artificialmente produzida.
Continuou deitada durante aqueles últimos segundos restantes enquanto contava mentalmente:
– Uma... Duas... Três... Quatro... Cinco...
Horas. Nunca havia se questionado, muito menos duvidado da veracidade do soar daquelas batidas. O número precisava, ou melhor, instituía o horário que a vila inteira, sem exceção, seguia.
Afastou as cobertas e corajosamente enfrentou o ar frio. O corpo tiritando incontrolavelmente durante muito pouco tempo, porque a primeira coisa que fez ao se levantar foi se vestir. No escuro, como sempre fazia, com a precisão de quem consegue enxergar além do que os olhos podem fazer. Acostumada a ver muito mais pelo gosto, som, tato e cheiro. Capaz de fechar, com as pontas dos dedos, cada botão, zíper ou fecho. Sem entender direito o porquê das pessoas fazerem tanta questão da visão. Os olhos enganavam, enquanto a escuridão parecia trazer... Uma suave sensação de ser, realmente, livre. Como um confortável e seguro abrigo onde podia simplesmente descansar, respirar, esconder-se. De quê? De nada que Alexandra pudesse ou quisesse confessar.
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O suave tom do abismo - Absorção - Livro Um
Ficción GeneralNa trilogia "O suave tom do abismo", Diedra Roiz nos conduz através do frio e da escuridão de um futuro distópico. Um mundo em que a ausência de luz é cotidiana e o sol não é nada além de descrições em livros proibidos, onde enxergar além do que a p...