tenth

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Acordei com o coração disparado. O quarto estava escuro, só uma fresta de luz atravessava a cortina, cortando o chão como uma lâmina. Senti o peito doer — aquele tipo de dor que não vem do corpo, vem da lembrança.

As imagens voltavam como um pesadelo que se repete: os gritos, o rosto dele tomado de raiva, eu tentando entender em que momento tudo desandou. Passei a mão no rosto, molhado. Eu nem tinha percebido que estava chorando de novo.

Respirei fundo, tentando me convencer de que era só um sonho. Mas não era. Tudo tinha acontecido. E pior: ainda doía igual.

O som da porta rangendo me fez prender a respiração.

— Ei… — a voz dele cortou o silêncio. — Você tá bem?

Gustavo entrou devagar, o cabelo bagunçado, uma camiseta velha, e aquele olhar… o mesmo que me desarmava antes.

— Não encosta em mim — murmurei, a voz falhando. — Por favor.

Ele parou no meio do quarto, como se tivesse pisado em algo invisível. Ficou me olhando por alguns segundos que pareceram horas.

— Eu sei que errei — ele disse, baixo, como quem tem medo das próprias palavras. — Mas eu tô tentando consertar.

Soltei uma risada amarga, enxugando as lágrimas com o dorso da mão.

— Consertar o quê, Gustavo? O que foi dito? O que você fez?

Ele suspirou, se aproximando um pouco mais, e eu vi nos olhos dele o reflexo da minha própria bagunça.

— Eu não consigo dormir sabendo que você tá assim… — confessou. — Eu te juro que se eu pudesse apagar tudo aquilo, eu apagava.

As lágrimas voltaram antes que eu pudesse impedir. Eu queria odiar ele, de verdade. Mas o problema é que uma parte de mim ainda lembrava o Gustavo que me fazia rir até tarde, que me protegia de tudo — até dele mesmo.

— Sai, Gustavo… — sussurrei, sem conseguir encarar. — Antes que eu volte a acreditar nas tuas desculpas.

Ele ficou em silêncio. E por um instante, só se ouviu a nossa respiração descompassada, misturada ao som da chuva que começava lá fora.

Quando ele finalmente deu um passo pra trás, meu peito pareceu se partir em dois.

— Eu ainda te amo — ele disse, antes de fechar a porta devagar.

Por alguns segundos, fiquei apenas olhando para a porta fechada, sentindo o eco da voz dele ainda vibrando dentro de mim.
“Eu ainda te amo.”
Três palavras simples, mas que pareciam pesar uma vida inteira.

O quarto estava frio, o ar pesado. Eu me encolhi sob o lençol, tentando esconder o choro que agora vinha com força.
Mas não adiantava.
A dor transbordava em silêncio — e quando dei por mim, o soluço já escapava alto, rasgando o peito.

Foi aí que a porta se abriu de novo. Eu nem precisei levantar o rosto pra saber quem era.

Gustavo entrou sem dizer nada, e por um momento pensei que ele fosse recuar. Mas ele ficou ali, me observando chorar — sem coragem de me tocar, sem saber se podia.
Até que eu simplesmente desabei.

— Eu não aguento mais, Gustavo — minha voz saiu fraca, tremida. — Eu tentei ser forte, eu juro… mas tudo me lembra você. Tudo.

Ele deu dois passos e se ajoelhou ao lado da cama, me olhando com os olhos marejados.
— Eu também não aguento mais ficar longe — respondeu, com a voz rouca. — Eu me odeio por tudo o que te fiz passar.

Antes que eu conseguisse responder, ele me puxou devagar para os braços dele.
O toque era hesitante, mas verdadeiro.
E quando meu rosto encontrou o peito dele, foi como se o tempo parasse.

O cheiro do perfume misturado com o da chuva me trouxe lembranças boas demais pra caber ali.
Eu chorei até a respiração falhar, e ele só me segurava mais forte, passando a mão no meu cabelo, murmurando coisas baixas, quase como um mantra:

— Eu tô aqui.
— Você não tá sozinha.
— Eu nunca devia ter deixado você carregar isso sozinha.

Meu corpo foi relaxando aos poucos, o choro virando soluço, e depois só respiração.
Ele continuou me abraçando, me embalando como quem segura algo frágil.

— Você é o amor da minha vida, sabia? — sussurrou perto do meu ouvido. — Mesmo se o mundo desabar, eu ainda vou querer você.

Eu não respondi. Só fechei os olhos, cansada, e deixei a cabeça encostar no ombro dele.
As mãos dele faziam carinho nas minhas costas, num ritmo calmo, até o peso nos olhos me vencer.

Quando percebi, já estava dormindo.
Pela primeira vez em muito tempo, sem pesadelos.

---

Acordei com o cheiro de café.
A luz do sol entrava de leve pelas cortinas, e por um instante achei que tivesse sonhado.
Mas então vi a bandeja sobre o criado-mudo — duas xícaras, pão, bolo e uma rosa improvisada num copo d’água.

— Bom dia — a voz dele soou suave, quase tímida.
Gustavo estava encostado na porta, o cabelo bagunçado e um sorriso pequeno, o tipo de sorriso que pedia perdão sem precisar falar.

— Você fez café? — perguntei, com a voz ainda rouca.

Ele riu baixo. — E quase queimei tudo, mas deu certo.

Me sentei na cama e ele veio se aproximando, colocando a bandeja sobre meus joelhos.
O silêncio que se formou não era mais pesado como antes. Era leve. Tranquilo.

— Eu sei que um café da manhã não apaga o que aconteceu — ele disse, olhando pra mim. — Mas… talvez seja um recomeço.

Olhei pra ele, com os olhos ainda cansados, e pela primeira vez em dias, senti um fio de esperança.

— Eu não prometo nada, Gustavo — falei, sincera. — Mas eu ainda tô aqui.

Ele sorriu de canto. — E eu também.

E naquele momento, entre o gosto amargo do café e o calor do sol batendo na janela, eu percebi: às vezes, o perdão começa com um simples “bom dia”.

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⏰ Última atualização: Oct 23 ⏰

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𝐼𝑛𝑒𝑣𝑖𝑡𝑎𝑣𝑒𝑙||ℳℯ𝓃ℴ 𝓀𝒶𝒷𝓇𝒾𝓃𝒽𝒶Onde histórias criam vida. Descubra agora