No começo era só um sussurro em minha cabeça. Faça isso, faça aquilo. Eu tinha medo, pois todos diziam serem vozes do além. Do além. Isso bota medo em qualquer criança, sabe? Então resolvi fingir que nada ouvia. Nos filmes, e com algumas raras pessoas que se abriram para o assunto, as vozes pararam, mas não para mim.
Você pode nunca entender isso, já que não somos todos que escutam com tanta facilidade. Não são todas as pessoas tão sensíveis. Magia. Seres Ancestrais. Esses sempre me acompanharam, desde muitas vidas passadas.
Ah, eu era jovem.
Não tinha menstruado ainda quando me perdi na floresta e acabei dormindo no breu esquecido. As árvores falando, a natureza crescendo, os animais se aquietando. Alguns procriando. E ele. Um ser homem, de chifres como uma galhada de um cervo. Nenhum ser assustou-se com a presença dele. Nem mesmo os frágeis coelhos se mexeram. Ah, os pequeninos passarinhos, nos galhos baixos... como dormiam seguros! Ele veio até mim, estendeu sua mão e sussurrou sem mesmo mexer os lábios. Direto em minha mente: "Nos veremos, aqui mesmo, mas não hoje. Volte para sua mãe, uma amada senhora".
O caminho. atrás de mim, iluminou-se, e então subitamente eu sabia como chegar em casa.
Mamãe me esperava, à porta, silenciosa. Olhando para todos os lados. Ao me ver apenas sorriu. Afastou o frio com seu abraço gostoso. Incondicional. Ela sabia que eu viria. "Confie na floresta", era o que dizia sempre.
Cresci assim, apenas confiando. Esperando.
Certo dia papai, bêbado, acertou o rosto de minha mãe com uma panela quente. Dizia coisas horríveis, dizia... coisas que gostaria de esquecer. Estávamos sem dinheiro. Ele estava ficando doente, sem poder trabalhar. Entendo que estava ficando desesperado, mas o desespero é um abismo. Se você pula, ele te engole. E só.
Naquela noite eu vi minha mãe esperar meu pai dormir, sentada na sala, sem acender a lareira para economizar lenha. Eu tremia de medo do que pudesse acontecer. Já era uma mocinha, prestes a sair de casa, casada com alguém que meus pais escolhessem. Eu temia tanta coisa. E esse temor só aumentou quando minha mãe levantou. Não vi uma lágrima, mesmo quando ela acendeu a vela e levou até meu rosto.
"Mamãe já volta."
Saiu de casa, enfiou-se na floresta. Ela murmurava algo, segurando a vela, de olhos fechados.
Eu deveria ter corrido e dito para tomar cuidado? Para voltar? Eu não sei... Naquele momento eu fiquei fascinada, observando detrás da janela. Mamãe estava tão... poderosa. Centrada. Não a vi mais...
Meu pai amanheceu morto. E eu só fiquei sabendo porque meus tios vieram nos visitar e tiveram que arrombar o trinco do quarto dele. Fui inocentada, claro.
Com dó de mim, meus tios disseram que me ajudariam a encontrar um bom par. Um rapaz que minha mãe havia dito ser um bom parceiro. Eu não fazia ideia de quem poderia ser, já que eu nunca tinha visto qualquer pessoa que não fosse de minha família, sempre enfiada dentro de casa.
Glen era o nome dele. Chegou, junto de meus tios, na semana seguinte. A primeira coisa que notei foram os desenhos nos braços. Perdão. Tatuagem. Em seguida, os cabelos tão diferentes. Claro como o sol, caindo sobre os olhos, deslizando pelas costas. Grande, como um lenhador. Como meu pai.
"Esta é Morgana. Seja gentil com ela. Se quiser levá-la até a cidade, pode levar. Deixaremos um cavalo aqui. Semana que vem realizaremos a cerimônia. Desculpe, Glen, não queríamos que fosse assim, mas, você sabe..."
Pacientemente, ele assentiu. Aliás, devo dizer que paciência deveria ser o lema dele. Nunca vi pessoa tão paciente.
Assim que meus tios se foram, Glen segurou minha mão e prometeu que faria de mim uma esposa feliz. Não me restaram dúvidas. Posso adiantar minha narrativa e dizer que meu esposo foi e é a criatura mais maravilhosa do mundo.
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Antologias
AléatoireGuerras entre dragões e demônios? Conversas de bruxas? Ou mulheres poderosas mostrando a que vieram? Amores mórbidos ou mortes terríveis? Seja o que for que você anda procurando, certamente há um conto aqui. Venha, delicie-se.