Trinta e Quatro

1.2K 124 56
                                    

Nota: esqueci-me de escrever uma parte muito importante na carta. está agora escrita e a negrito.

Nós costumamos contar até três para fazer tarefas difíceis, cansativas, dolorosas. Um, dois, três, puxa a mulher durante o parto. Um, dois, três, tenta o adolescente levantar-se da cama quando passou a noite a chorar por problemas pessoais ou a estudar. Um, dois, três, o cirurgião conta para afastar as costelas do paciente. Um, dois, três, o ator conta para entrar no palco. Um, dois, três, é uma forma de nos prepararmos para algo que sabemos que vai acontecer mas não estamos mentalizados para tal, uma forma de calmante.

Mas e para quando alguém morre? Quando perdes alguém muito próximo de ti? Quando alguém que te causou tanta dor aparece sem aviso prévio? Isso pode acontecer mas não há um, dois, três para contar, não há um, dois, três para te preparares para o futuro. O amanhã apenas vem sem anúncio e colida contra ti, esmagando-te como uma formiga.

Um, dois, três - o amanhã chegou.

∞ ∞ ∞

【 23 De Fevereiro de 2014 】

『 Emma Reed 』

O preto abraça o meu corpo como se fosse parte do mesmo. O vestido cobre os meus braços, permitindo esconder as feridas criadas por mim. A minha aparência está minimamente saudável, aperfeiçoada através da maquilhagem pela minha mãe. A mesma insistiu pois faria parecer mais composta. Eu não recusei por não ter vontade de recusar e por admitir que estava com um aspeto horrível. Nunca esteve, de qualquer das maneiras.

Olhando-me ao espelho confronto-me com um ser inanimado a olhar-me de volta. Não sei que criatura desconhecida estava presente perante mim. Nunca a vira antes, pelo menos não desta forma. No entanto, não me preocupei em entender a existência de tal alma. Na verdade, estou farta de ter de entender tudo e todos. Farta de compreender todas as atitudes, gestos, palavras, e não ser compreendida. Cansei de perdoar. Cansei de pensar. Cansei de existir.

Um batoque é ouvido na minha porta. A minha mãe entra sabendo que não iria responder e, vindo na minha direção, aconchega o meu ombro. Os seus olhos são de pena ao verem-me. Consigo ver uma lágrima a querer fugir-lhe mas logo a limpa e beija a minha testa, pedindo-me que me despachasse para não chegar atrasada. Chegar atrasada a um funeral? Não há mal em tal ação visto que o morto não tem pressa em ir para lado nenhum.

Após a minha progenitora sair da divisão, volto a verificar aquele ser inerte perante mim. Por muito que não queria admitir, aquele ser sou eu. Aquele cadáver ambulante que aparenta nem existir. O meu corpo parece estar adormecido. A minha mente parece estar adormecida. Os meus sentimentos parecem estar adormecidos. Mas eu não queria estar na etapa intermédia entre sonambulismo e vida. Eu queria estar plenamente a dormir. De vez. Agora. Mas, infelizmente, parecia não ser o meu momento de ir. Ainda.

∞ ∞ ∞

Os sinos dão o sinal de que se dera por terminado o funeral. Um mar de negro navegava em direção à enorme porta da igreja, deixando a luz do dia entrar em força para clarear o ambiente escuro que estava lá dentro. Não me mexi. A mãe proferiu algumas palavras que não me dera ao trabalho de entender e entrou na confusão juntamente com a minha irmã. Eu ficara a olhar para o caixão a missa inteira na esperança que tudo isto não passasse de um horrível pesadelo e que aquele rapaz de caracóis rebeldes iria acordar e vir até mim para me abraçar. Mas isso não passou de uma fantasia à qual nem Deus pode concretizar.

Onde está esse ser divino que toda gente fala e que ajuda com a dor? Onde está essa força invisível que supostamente ajudaria nos maus momentos? Ou é como toda gente e desaparece quando mais se necessita? Cuida tanto dos seres humanos que os deixa morrer? Que tipo de Deus é esse? Não. Ele não é divino, não é superior, não é uma força. Ele deixa inocentes morrerem.

Evanescente (#1 Evanescente série)Onde histórias criam vida. Descubra agora