Finalmente um descanso. Ainda quero entender onde estava com a cabeça quando disse que poderia ajudar o professor Jubel no laboratório II essa semana.
Ah, é. Perdi minha bolsa, agora preciso fazer de tudo pra me virar lá dentro. Droga, sempre assim.
Saí do laboratório e me escorei na parede branco-encardido do quilométrico corredor do 3º andar. Preciso respirar um pouco. Tiro duas aspirinas da mochila e engulo em seco. Vou até a janela e a escancaro, sentindo uma rajada de vento dando vida aos meus cabelos. Não quero voltar para casa, tia Deline já deve ter chegado e a última coisa que preciso hoje é ouvir dela que eu devo "aprender a cozinhar como mulher" e "me vestir como eu nasci para me vestir". Sabe, eu amo minhas camisas xadrez de botão e não penso em me desfazer delas tão cedo. Tenho praticamente uma de cada cor que pode se imaginar.
Pingos de água escorrem pela minha testa. A chuva me tira do transe e me faz lembrar que devo pegar Gautier na escola antes de ir para casa.
São 17:49 e ele sai às 18h. Atrasada de novo, parabéns Cecil, você é a melhor irmã/mãe/pai/guardiã do mundo! Prendo meus longos cabelos pretos em um coque, jogo minha mochila jeans no ombro direito e coloco o capuz do meu moletom na cabeça enquanto desço correndo a escadaria. Não suporto elevadores, sou muito claustrofóbica.
A chuva está aumentando e eu não tenho nenhum guarda-chuva comigo hoje. Torço para que Gaut tenha. Corro, porque sei que o que faz com que você se molhe muito não é correr ou caminhar na chuva, mas o tempo que você fica sobre ela. Em qualquer outro dia eu largaria minha mochila em um canto da calçada, tiraria o capuz e sorriria para o céu, sentindo a água encharcar minhas roupas. Mas hoje não farei isso, não faço há anos. Não faço desde que mamãe sumiu. Enquanto penso pela trilionésima vez onde ela pode estar hoje não percebo uma moto vindo a toda velocidade em minha direção então apenas me jogo na calçada antes que passe por cima de mim.
Corro mais alguns quarteirões e já são 18:10 quando finalmente chego na Dominique. Ele já está no portão com um pequeno guarda-chuva aberto na mão esquerda. Toda vez que vejo Gautier lembro de como minha mãe implicava com seus pequenos cabelos rebeldes, sem jeito de parar como ela queria arrumar. Lembro do quanto preciso de meu irmão para viver, do quanto preciso de sua responsabilidade, pontualidade e genialidade, do quanto preciso cuidar dele. Corro para um abraço mas, durão como sempre, rejeita e apenas diz um "Atrasada de novo", sorrindo com o canto da boca. Sei que ele se importa com isso.
Depois de dizer a ele que não preciso do guarda-chuva porque não vejo problema em me molhar, seguimos por mais dois quarteirões conversando sobre tudo.
-Quando é que você se forma? - Pede Gaut, me olhando como se esperasse um "nunca" como resposta.
-Provavelmente daqui três anos. Quem sabe quatro... -digo, pensando em quanto preciso estudar para a próxima avaliação de cálculo - Por quê?
-Só pra saber. Boa sorte! - diz, rindo sarcasticamente.
É só colocar meus pés naquele tapete felpudo da cozinha que eu sinto vontade de me jogar da varanda mais próxima. Como Deline e suas "amigas" conseguem sujar tanta louça?
Pego meu pote de remédios e engulo qualquer colorido que encontro lá dentro. Essa cozinha amarela me dá agonia. A bancada é de mármore amarelo também, para combinar com os quadros de 25x25cm de frutas na parede oposta. O objetivo era ser uma cozinha alegre, o que fica difícil com tanta porcelana suja na pia. Coloco café no coador e ligo a cafeteira, pelo menos quando terminar de lavar tudo isso vou ter algo que eu gosto pra beber.
Perco preciosos vinte e cinco minutos de estudo naquele cômodo. Tenho vontade mesmo é de "pedir educadamente" pra tia contratar uma empregada, dinheiro ela tem de sobra. Não que Deline seja má, ela só tem uma mente de coronéis de 1880 que deixa qualquer um maluco depois de uma tentativa de debate. Juro que se ela pudesse teria comprado alguns escravos para fazer suas vontades, mas é claro, ela não pode, então tem a mim para fazer todo o serviço da casa exceto cozinhar. Nunca consegui cozinhar direito, fui considerada até uma desonra para a família no último natal.
Peço se alguém quer café. Depois de recusas sirvo uma caneca e vou até o quarto de Gaut ver se ele precisa de ajuda em alguma lição. Ele tem 14 anos, 4 a menos que eu e, na maioria das vezes, é ele quem me ajuda com meus deveres da faculdade. Admito, ele já fez uns três trabalhos pra mim. Quem deveria estudar física é ele, não eu.
Na verdade eu não tenho ideia de como fui escolher física, acho que foi o curso que mais me atraiu naquele panfleto da universidade. Como consegui nota para entrar? Eu não tenho nem ideia. O que eu realmente quero? Astronomia, e eu nunca conseguiria entrar nesse. Então, bem, universidade pública e o mais perto das estrelas que pude chegar. Física não é um curso ruim, muito pelo contrário, é algo que me interessa bastante (e não posso dizer que sou um desastre), mas não foi pra isso que eu fui feita. Não entendo por que temos que estudar tanto para nos encaixarmos em algum emprego, ninguém foi feito pra isso.
-DG, precisa de ajuda com alguma coisa? - pergunto enquanto abro a porta do seu quarto.
-Conhece uma coisa chamada bater na porta? Eu, hein - esbraveja ele, me olhando com censura - Na verdade não preciso ainda, obrigado.
Fecho a porta do seu quarto, fingindo-me de ofendida, e vou até o meu. Paro na porta e observo-a. Três linhas transparentes parecem escorrer da moldura, cada uma tem cerca de 5 conchas penduradas. Passo minha mão lentamente pelos fios, cada fio foi colocada para uma pessoa importante pra mim. Certo, a primeira é da mamãe, a segunda de Gaut e, bem, a terceira, digamos que seria melhor ser esquecida.
É só abrir a porta do quarto que logo sinto o cheiro do incenso que acendi mais cedo. Já terminou de queimar, mas o cheiro vai ficar por uns dois dias ainda. Encaro minha parede e as fotos penduradas nela. Percorro meus olhos pelas fotos, cuidando cada detalhe, até perceber que se passaram mais trinta minutos e lembrar que tenho que estudar.
Depois de meio litro de café e cinco listas de exercícios resolvidas decido tomar um banho e ir dormir. Por mais estranho que pareça, a cafeína só funciona para mim enquanto há luzes acesas. Mesmo que tudo que meus olhos peçam é que eu os feche logo, não posso. Encaro e conto cada estrela no teto do meu quarto. São cinquenta e seis, não falta nenhuma, não sobra nenhuma. Resisto e não tomo nenhum remédio, porque da última vez que tomei antes de dormir só consegui pegar no sono três dias depois, foi horrível.
Meus pensamentos estão longe outra vez. Não quero começar a me perguntar sobre a vida agora, só tenho seis horas de sono e são tão preciosas para mim. Ou pelo menos deveria tratá-las como especiais. Quero resistir mas ao mesmo tempo não. Quero sonhar mas nunca consigo.
Me dou por vencida e fecho os olhos, enquanto lembro da letra de uma música que ouvi hoje.
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Prelúdio
RomanceCecil é uma garota diferente e definitivamente fora dos padrões. A vida que leva não é nada fácil: desde que sua mãe desapareceu, ela e Gautier, seu irmão, vivem sob a tutela de uma tia extremamente vaidosa que faz da vida de Cecil um verdadeiro inf...