Nem acredito que finalmente é sábado. Parece que eu estava vivendo há dois anos nessa semana. Um minuto eram 24 horas e uma hora eram 7 dias.
Vou levar Gaut no cinema e depois comprar alguma coisa para beber e ficar caminhando sozinha por aí até a madrugada. É o que eu gosto de fazer e ele sabe disso, sabe que eu sou sozinha, mas sabe que eu quero protegê-lo do jeito que eu puder e que vou fazer isso. Nunca vou deixá-lo. Não sou aquele tipo de pessoa super protetora, como Deline é com ele. Sei que Gautier tem que aprender com experiências. Apesar de sua idade ele é muito maduro. Acho que por termos passado por tanta coisa sem nossa mãe nos fez ficarmos velhos antes de aparentar.
Quero ficar na cama até as 11h, é tão quentinho e confortável aqui, fora que parece que me amarraram, não tem como levantar. A não ser, é claro, que alguém bata na porta, abra-a com a maior delicadeza do mundo e grite comigo, correndo abrir as janelas e puxando meu cobertor. E é claro, isso está acontecendo agora.
-CECIL, Cecil, Cecil, Cecil, levante, preguiçosa. - tia Deline entra em meu quarto batendo palmas. Em suas mãos vejo dois anéis a mais do que ela sempre usa - Você tem muito a fazer hoje e não esqueça que vamos provar vestidos à tarde. Depois você vai comigo ao leilão beneficente de Jeanette, ela espera ansiosamente sua presença.
Ah não. Não, não, não! Esqueci completamente desse "compromisso obrigatório".
-Tia, não vou usar vestido e não vou ao jantar, obrigada. - digo, bocejando logo depois.
-Cecil Desjardins, você vai ir comigo. - diz ela, enquanto me olha como um policial olha para um detento - Não tente me enganar como fez da última vez, não vai funcionar. Agora, levante e vá polir a prataria, já são 8h.
Ao ouvir meu protesto ela apenas diz um "Agora" e sai do meu quarto. É melhor eu levantar, não existe teimar com Deline.
Da última vez que me recusei a ir a um dos seus eventos me "refugiei" em um hipermercado perto daqui. Meu esconderijo era obviamente o último lugar para ela me procurar, estava me sentindo muito segura lá. Depois de duas horas e meia vagando pelos corredores vejo apenas cinco policiais correndo em minha direção. Até hoje não sei quanto ela pagou para colocar a polícia atrás de mim, muito menos como eles me encontraram sendo que meu celular estava em casa e eu saí irreconhecível. Não existe fuga para aquela mulher, não existe não e não existe livre arbítrio.
Afundo no tapete felpudo do meu quarto. Pego algumas aspirinas e um pouco de café gelado que sobrou de ontem para tomá-las. Gosto horrível, mas serve. Encaro o teto por alguns segundos e levanto para arrumar minha enorme cama com acolchoados do século XVII que, sinceramente, eu acho a melhor coisa do mundo. Ah, essas mil almofadas... Depois de um dia cheio é só vir aqui e jogar o corpinho nessa cama. Melhor remédio.
Falando em remédio, estou com dor de cabeça. E o problema disso é que quando você acostuma seu corpo com todo tipo de remédios, nenhum mais faz efeito. Decido então ficar um tempo na água gelada, quem sabe isso ajude.
Depois de dez mil pratos polidos e quatro lojas, aqui estou eu no leilão. Minha dor de cabeça não passou e a única coisa que consigo fazer é fingir um sorriso e ficar sentada. Na mesa em que estamos tem uma plaquinha escrito "Desjardins & Riseu", mas não vi ninguém dessa tal família Riseu chegar ainda. A decoração é impecável como sempre: o teto alto tem tecidos dourado e verde-água presos a cada metro; as janelas tem cortinas douradas novas; as mesas tem toalhas do mesmo verde; e o palco do leilão combina igualmente com todo o salão.
Poderia estar tudo perfeitamente harmonioso para mim. Poderia, não está. Não me sinto bem em lugares com muitos adultos ou idosos, eles sempre acham que você não sabe absolutamente nada se não tiver mais de vinte e dois anos, conversam com você como se fosse uma criança e pior ainda é quando começam a fazer perguntas constrangedoras. Queria conversar com alguém mais da minha idade para me distrair da dor, porém tudo que vejo são crianças com quem Gautier está e algumas mulheres e senhoras.
O leilão está prestes a começar e tia Deline está no palco, ela sempre apresenta os eventos de Jeanette. Após fazer uma abertura o evento começa. Assim que eu consegui pensar em uma estratégia para sumir do salão eis que recebo uma surpresa: pratos de doces são trazidos às mesas. Não resisto e decido ficar mais alguns minutos por ali mesmo.
Depois de alguns objetos velhos e interessantes e outros velhos e nada interessantes, Jeanette diz algumas palavras e representantes das entidades que vão receber o dinheiro fazem agradecimentos, encerrando. Movimento de cadeiras para cá e para lá e quando percebo já estou no carro a caminho de casa. De repente tenho uma ideia, digo para a tia me deixar na próxima rua.
-O que quer fazer ali?
-Vou dar uma volta, preciso caminhar para esfriar a cabeça. - digo, acrescentando o argumento "Fui uma boa menina e não tentei atear fogo em nada durante o leilão" e, depois de uma pequena discussão, Deline encosta o carro assim que chega na rua da frente.
-Se cuide e volte cedo. Não quero que esteja na rua até tarde.
Agradeço e olho o horário em meu celular. O supermercado ainda não fechou e decido comprar alguma coisa alcoólica e uns chocolates.
Bancos na areia.
Uma aspirina.
Conversas vazias.
Pessoas vazias.
Abro uma garrafa de vodca com suposto gosto de maçã e deixo o líquido queimar minha garganta. Estou sentada sozinha em um banco de madeira observando o mar. As ondas vêm e vão em seu ritmo hipnotizante. Opto por ficar sem música de fundo, deixo isso com as conversas de outras pessoas ao redor e o doce som de ondas quebrando. É o momento em que cenas da minha vida passam diante dos meus olhos, fazendo com que uma palavra apenas perdure em meus pensamentos:
Amor.
Não, não o que sinto por Gaut e mamãe. Não é o mesmo tipo de amor que colocamos em uma obra que fazemos. Bebo mais alguns goles enquanto minha mente se dedica a tentar imaginar como seria me apaixonar. Quero uma vez na vida sentir borboletas em meu estômago, minhas mãos suando e meu coração batendo mais forte. Logo cometo o erro de querer distanciar todo e qualquer pensamento sobre isso dar errado. Já não basta de coisas dando errado em minha vida? E se isso der certo, para onde vai me levar?
Quero me sentir viva pelo menos uma vez.
Estou decidida, vou me apaixonar.
Caminho sentindo a areia entre meus dedos. Deixo o vento litorâneo balançar meus cabelos como se eles tivessem vida. Pego uma concha pequena e guardo no bolso do meu calção. Sinto o cheiro do mar, ouço as ondas em meu coração e, por um momento, eu e o oceano estamos entrelaçados como um único ser.
Desta vez adormeço enquanto lembro da visão do brilho da lua nas ondas, sem música.
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Prelúdio
RomanceCecil é uma garota diferente e definitivamente fora dos padrões. A vida que leva não é nada fácil: desde que sua mãe desapareceu, ela e Gautier, seu irmão, vivem sob a tutela de uma tia extremamente vaidosa que faz da vida de Cecil um verdadeiro inf...