III.

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Mais um dia e uma tempestade.

Acordo com um agudo chamado de tia Deline. Já passou da hora de eu ir para a faculdade.

Está chovendo canivetes lá fora e eu simplesmente amo esses dias.

Preparo meu café da manhã e decido não tomar nenhum remédio para ansiedade nesse começo de semana. Lavo meus cabelos e entro no carro sem secá-los mesmo. Gosto da sensação frio que o vento deixa quando eles estão úmidos, dá arrepios. Não me importo de ficar uma semana espirrando.



Chego alguns minutos atrasada para a aula de termodinâmica. Preciso estudar muito para essa matéria. Bato na porta e entro rapidamente. Olho para as mesas e congelo. Tem teste hoje e eu não sabia. Não posso reprovar.

Marcèline, a garota cujo eu chamava de amiga, observa meu pânico com um sorriso no rosto. Marcie, como eu costumava chamá-la, tem cabelos bem curtos e loiros e um rosto triangular que combina com sua boca vermelha. Não sei de onde ela tira tempo para passar maquiagem se acorda sempre atrasada. Ou melhor, costumava acordar. Encaro-a e seu sorriso se desfaz. Ela não consegue olhar diretamente em meus olhos verdes por muito tempo e logo os desvia para a prova enquanto caminho até a mesa da Srta. Clavel. Ela releva meu atraso pois não é algo comum e me entrega uma avaliação, indicando o lugar onde devo sentar.

Meu nome. Em seguida dou uma boa olhada para as três folhas de prova, querendo apenas ter lembrado de pedir se foi marcado algo nos dias em que faltei por motivos, hã, de saúde.

Me arrependo de não ter tomado alguns calmantes depois de acordar.



Já é meio-dia e ainda não parou de chover. As aulas do dia acabaram agora e durante a tarde eu vou cuidar do laboratório do professor Jubel de novo. Saio da sala 3J e desço até o corredor dois onde estão os armários. Originalmente eram apenas alguns guarda-volumes mas, logo que entrei aqui, os alunos de alguma engenharia fizeram projetos para fazer armários para todo mundo. O meu não está em um bom nem mal lugar, se considerar bom ao lado das escadas e ruim perto dos banheiros, no final do corredor. Chego em frente ao meu e coloco a combinação: o aniversário de minha mãe. Abro-o com cuidado pois a porta está prestes a cair por causa de um pequeno acidente causado pelo pessoal da filosofia. Largo meus livros dentro do armário todo alaranjado por dentro. Colo novamente em sua pequena parede uma foto minha e do Gaut que vive caindo. Nesse momento me pergunto qual a validade dos polímeros de uma fita adesiva? Quando estou prestes a fechar a porta de ferro (trabalho que exige cerca de doze segundos como prevenção da mesma cair) eis que surge Marcie e seu novo namorado.

Marcie é muito bonita. Ela tem uma coleção de lenços e está sempre com um amarrado na cabeça. Hoje é vermelho, combinando com seu batom. Quem sabe ela tenha mais namorados que lenços, daria uma boa comparação. Torço para ela simplesmente me ignorar mas, se bem conheço, ela vai fazer algo.

Hoje não, por favor, hoje não. Hoje não.

Meus apelos a alguma força superior não dão certo. Marcèline percebe minha presença e corre até mim, puxando seu "grande amor" de uma semana pela mão esquerda.

-Cecil, como foi no teste mais cedo? - pergunta, mostrando seu melhor sorriso irônico.

-Muito bem, obrigada. - apenas saia daqui, por favor, me deixe em paz - Vou indo nessa, até mais.

-Cecille querida, deixe-me apresentar meu futuro marido, Harry. Ele veio do Reino Unido para estudar. Quando terminarmos os estudos vou morar com ele e teremos três filhos. - inacreditavelmente ela tem um discurso-base que modifica a cada namorado novo.

Então, para deixar a situação mais desagradável ainda, ela ousa perguntar:

-Já tem alguma ideia de quem seja seu pai?

Adoro você também, Marcie.

-Não, estou no mesmo ponto. Escuta, eu realmente preciso ir. Adeus. - digo. Bato de uma vez por todas a porta de meu armário e saio o mais rápido que posso.

Não quero chorar na frente dela nem na frente de ninguém.

Não quero nunca mais vê-la.



Coloco Fairweather Friends para tocar bem alto em meus fones. Deixo a música levar meus pensamentos para bem longe enquanto corro na chuva. Gaut não almoça comigo em dias de chuva. Mais uma coisa ótima nesse dia: acordo atrasada, pego um resfriado, descubro que tem uma prova da qual eu realmente precisava ir bem e não vou nada bem, Marcie faz mais uma de suas jogadas e Gaut não almoça comigo, o que falta?



Entro no Subway mais próximo. Está quase vazio, exceto por algumas garotas em uma mesa na esquerda e dois grupos à direita da porta. Vou até a fila e espero minha vez de ser atendida. Olho para frente e um garoto está me encarando. Bem, garoto, deve ter uns dois anos a menos que eu. Encaro de volta, sou ótima com "jogo do sério". Ele não aguenta e logo ri, mas não retribuo. "O garoto" me convida para sentar na mesma mesa que ele e acabo aceitando, plenamente desconfiada. Depois de trocarmos algumas palavras posso dizer que ele não parece ser um psicopata, apenas um pouco imaturo e simpático.

Decido não perguntar seu nome e nem dizer o meu, nem conversar algo sério, evitando assim vínculos afetivos desnecessários e, quem sabe, futuras decepções.

Essa não, estou tonta. Fazia dias que isso não acontecia.

Cecil não apague, Cecil não apague.

Cecil,

não

apague.

A última coisa que consigo enxergar é "o garoto" e eu estou em seus braços.

Tudo fica preto.

PrelúdioOnde histórias criam vida. Descubra agora