Capítulo 3

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O vento batendo contra meu rosto parecia zumbir como uma abelha, sentia meus cabelos castanhos balançarem a medida que meus passos se tornavam mais rápidos, mais ao fundo podia ouvir gritos e passos fortes, galhos sendo partidos, gemidos, choros e risos, era uma mistura de sons que parecia aumentar a medida que me afastava, era perturbador, tapei meus ouvidos com as mãos e abaixei-me próxima à uma arvore, apoiei minhas costas contra o tronco duro e por mais que eu tentasse o barulho só aumentava.

-Ela tem uma vida dos sonhos - ouvi uma voz feminina e aguda dizer e o som parecia girar em meu cérebro - é uma princesa, tem tudo o que qualquer um pode querer.

-É tão perfeita que me irrita - outra voz, dessa vez grave e masculina, mas em um tom forte e austero, como se estivesse realmente irritado com algo - tão perfeita que chega a ser falsa.

"Eu não sou falsa, não sou, eu não sou..." sussurrei baixo para mim mesmo enquanto abraçava meu corpo e fechava os olhos com força, como se assim pudesse calar as vozes de alguma maneira, mas não adiantou.

-E ainda irá se casar com o duque, não confio em nenhum dos dois - a voz de mulher disse e o "não confio" continuou ecoando em minha mente, como um alerta ou algo parecido, senti minha cabeça doer e minha visão escureceu aos poucos, logo fui enebriada pelo breu e ouvi meu nome ser chamado.

-Oceania Rupert, Oceania, acorda - a voz se tornou mais alta a medida que minha consciência voltava aos poucos - está na hora do café, Oceania.

Levei minhas mãos para meus olhos e esfreguei suavemente a pálpebra, mais para ter certeza de que está viva do que outra coisa, e lentamente abri meus olhos, sentindo meu corpo tremer levemente, um vibrar constante e suave.

-Ainda bem que acordou, agora levante-se e apronte-se ou irá ficar sem o café - Kára abriu seu sorriso doce e estendeu-me uma de suas mãos, a qual segurei e me ergui da cama - estava tendo um sonho ruim, querida?

Suas mãos gentis acarinharam-me o rosto de forma delicada e o desconforto causado pelo pesadelo evaporou como em um passe de mágica.

-Foi apenas um pesadelo, nada demais - falei ao ficar ereta com os pés firmes contra o chão.

-Se quiser contar-me sobre ele sou toda ouvidos - neguei com a cabeça e sorri tentando mostrar que estava tudo bem e que não fora nada demais.

Após o desjejum andei calmamente por entre as cabanas observando tudo, a forma como algumas arvores eram curvadas ou alguns jovens cantarolando e assoviando enquanto não dava o horário para suas atividades.
Minhas pernas me guiaram até a cabana onde teria minha primeira atividade do dia, a cabana dos poetas, subi os dois degraus em frente à cabana e parei em frente à porta, olhei a forma como a madeira clara podsuia pequenas ranhuras por toda a sua altura e a maçaneta prateada oxidava aos poucos, tendo pequenas manchas avermelhadas ao seu redor.
Uma mão apoiou-se em meu ombro e virei o rosto, encontrando Charlotte com seus cabelos curtos e loiros balançando suavemente pelo vento e um sorriso tranquilo em seus lábios.
-Estive lhe procurando por todos os lados, você se esconde bem - um riso suave escapou de seus lábios e seus olhos se fixaram nos meus - aposto que era a melhor quando brincava de esconde esconde.
-Esconde esconde? Eu nunca brinquei disso...
-Não mesmo? Então nós vamos jogar, me encontre perto da fogueira assim que sua atividade da manhã acabar - Charlotte sorriu e deixou um beijo em minha bochecha direita antes de correr para outra direção, não sem antes olhar para trás e gritar um "até logo".
Abri a porta de madeira ouvindo o ranger suave e me esgueirei para dentro da cabana vazia, escolhi uma cadeira qualquer e olhei ao redor, tinham alguns papeis espalhados, revistas e jornais sobre a mesa.
Kára entrou pouco tempo depois sendo seguida por outra garota de baixa estatura e os cabelos escuros como a noite e cacheados, com um volume que contrastava perfeitamente com sua pele amendoada.
-Hoje iremos fazer um jogo de rimas, como estaremos em três será mais fácil - Kára ajeitou três cadeiras em uma pequena roda e se sentou chamando para nos juntarmos - iremos fazer alguns tercetos e tentar rimar, cada uma vai começar um terceto, por exemplo: se eu começar falando "o Sol brilha e ilumina meu dia" vocês terão que falar frases com sentido e que rimem, entenderam? Depois fazemos outra rodada começando por uma de vocês.
-Acho que entendi - disse enquanto me ajeitava em minha cadeira.
-Por que não começa, Oceania?
-Certo... Governa o tempo, governa o sonho, Altjira*
-Criou a Terra, criou o mundo, oh ele gira - continuou Kára sorrindo divertida pela minha referência a cultura australiana.
-E quando fez o homem apenas disse: "se vira".
O jogo continuou por mais um bom tempo, em alguns momentos as frases ficaram esquisitas e ao poucos tentavamos prosseguir e aumentar o número de versos, nos complicando ainda mais pela busca de palavras e sentido.
-Vamos para nossa última tentativa, um sexteto dessa vez, eu irei começar - Kára parecia se divertir com nossas caretas e pausas longas tentando formular alguma frase coerente - por muito tempo vive na solidão.
-E por algum motivo não tinha paixão.
-Vivia perdida, um pouco sem chão.
-Quando dei por mim não era certeza, confusão.
-Alguém, por favor, devolva minha noção.
-Ensine-me novamente o que é ter uma nação.
-Muito bem, meninas, nos vemos amanhã, descansem e tenham uma boa atividade após o almoço.
Levantei-me rapidamente e corri para fora, queria chegar o mais rápido possível perto da fogueira para poder jogar com Charlotte, seria minha primeira vez com outras pessoas de minha idade e a animação fervia em meu corpo, fazia meu sangue ferver de excitação.
Quando cheguei havia um garoto sentado próximo a fogueira, seus olhos eram negros como o breu assim como seu cabelo elevado em um topete baixo e as laterais levemente raspadas, sua pele era dourada, queimada pelo Sol e quarada pelo vento.
Uma brisa forte fez com que ele ergue-se a cabeça e seu olhar cruzou com o meu, seu olhar era duro, como se reprimisse algo e tão intenso quanto um relâmpago.
O garoto se levantou e andou em minha direção, podia sentir seu olhar me queimando, como brasa tocando a pele, seus passos eram firmes e fortes contra o chão de terra, e quando ele passou do meu lado senti o cheiro de seu perfume forte e amadeirado, um leve toque cítrico e másculo.
Seus passos se afastaram e apenas restou o seu cheiro no ar ao meu redor, mas que aos poucos se suavizou e deu lugar à um perfume suave e doce que reconheci como o perfume de Charlotte.
-Ficou esperando por muito tempo? Desculpa, sai um pouco atrasada da atividade - Charlotte revirou os olhos de forma descontraída e olhou sobre meu ombro e acenando freneticamente - Matthew, Anita, venham aqui.

Logo os dois chegaram e Charlotte se pôs a falar sobre o que iriamos fazer ali, explicou-me milhares de vezes até ter total certeza de que eu entendera tudo e todas as regras, assim o jogo começou com Charlotte contando e nós três corremos por entre as cabanas, eu tentei subir em uma árvore, mas não consegui e dei a volta pelo tronco de madeira tropeçando em duas pernas que estavam estendidas ali.

-Desculpa, foi sem querer - falei me virando para a pessoa que estava ali sentada e dei de cara com os olhos mais negros que já vi em minha vida.

-Você de novo? Está me perseguindo, garota? - resmungou o garoto que eu vira anteriormente próximo a fogueira largando um pequeno caderno marrom de capa dura ao seu lado na grama.

-Já pedi desculpas, não fiz de propósito - murmurei cruzando meus braços e bufando baixo enquanto meus olhos seguiam até Charlotte que terminava de contar e me agachei ao lado do garoto, encostando minhas costas contra a madeira firme - sou Oceania Rupert e você?

-Meu nome é Noé da sua conta - o garoto de cabelos negros tornou a pegar o caderno e o abriu, notei seus olhos seguirem as letras ali escritas rapidamente e tentei espiar o que lia, porém ele fechou antes que pudesse compreender a primeira palavra - não seja intrometida, garota com nome de continente.

-Grosso - aproximei meus joelhos contra meu peito e os abracei, como se dessa forma me protegesse de qualquer coisa ao meu redor.

-São apenas alguns poemas que minha mãe escrevia quando criança, se é o que quer saber - o garoto colocou o caderno ao lado e seus olhos encontraram-se com os meus, e pude jurar sentir a brisa gélida que continha neles, como quando abrimos o freezer e o ar gelado vem em nossa direção, tocando nossas faces em uma carícia leve - sou Michel Jordan, mas não é um prazer conhecê-la.

-Você é tão rude - revirei meus olhos e virei o rosto para o lado contrário de onde ele estava tendo um relance de Charlotte andando por entre as cabanas ali perto - foi um desprazer conhecê-lo, Michael Jordan.

-É Michel Jordan, garota - ele resmungou mais algumas coisas após eu me levantar e correr para o pique para me salvar.

-Estou salva - gritei para que Charlotte, que estava próxima, ouvisse.

-Você é boa nisso, nem lhe vi passar por mim - Charlotte riu e continuou a procurar os outros dois.

Vi uma das pernas de Matthew escorregar por um dos galhos da árvore enquanto Charlotte passava por perto e o farfalhar das folhas chamou a atenção da loira que gritou e correu para o pique anunciando o nome de Matthew.

Já Anita havia se escondido tão bem que passamos mais de meia hora a procurá-la por todo o acampamento e acabamos a encontrando dormindo perto do lago, mais visível que uma montanha, ela nem ao menos se deu ao trabalho de se esconder, já que era longe o suficiente para não nos arriscarmos a ir para lá.

Acabamos perdendo a hora do almoço nessa brincadeira e passamos o resto da tarde enfiados na cabana de Charlotte e Anita comendo salgadinhos e doces que Anita tinha dentro da mala.

Ficamos conversando sobre tudo que nos vinha a cabeça e quando nos demos conta já era hora do jantar e havíamos perdido a atividade de teatro e se não nos apresássemos perderíamos o jantar.

O jantar seguiu calmo e tranquilo, o garoto de olhos negros não apareceu e murmurinho das conversas enchia meus ouvidos e eu tentava acompanhar a conversa entre os três à minha frente, porém acabava me perdendo e soltando algumas risadas pela confusão de vozes em minha mente, fazia muito tempo que não me sentia assim, tão viva e completa, porém sabia que logo terminaria, em menos de sete dias voltaria para a casa e teria que ir para a escola, a rotina novamente que sempre nos absorve e nos atrai de maneira tão sutil que quando reparamos já caímos em sua armadilha.

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*Altjira: é o pai celestial para os aborígenes da Austrália Central. é também considerado governante do tempo do sonho (Alchera). Diz-se que ele criou a Terra e depois se retirou para os céus, mantendo indiferença pela humanidade.

Oi, gente, então, provavelmente terá mais um ou dois capítulos no acampamento e adoraria saber o que estão achando, o que esperam para os próximos capítulos?


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