Primeiro Dia

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O alarme toca, despertando Jane de mais uma noite sem sonhos. Ela pega o celular confere a hora. São seis da manhã. Permanece deitada fitando o teto fixamente, imersa em pensamentos.
"Mais um ano como todos os outros." Ela pensa. Pelo menos sei que está acabando...
O barulho do despertador cessa e a arranca de seus pensamentos. Levantou-se da cama e se dirigiu para o banheiro, ainda meio sonolenta. Passou pelo quarto de sua mãe e aproveitou para ver se ela ainda se ela ainda dormia. "Aparentemente sim." Pensou ela com um sorriso.
Continuou seu caminho até o banheiro. Ao entrar, fechou bem os olhos ao ascender a luz, para só então reabri-los lentamente. Ficou um tempo com eles abertos para que se adaptassem à luminosidade repentina e em seguida parou em frente ao espelho e fitou seu reflexo. Constatou que havia mudado muito pouco em relação ao ano anterior. Estava um pouco mais alta. Talvez um centímetro. Seu cabelo negro e ondulado também crescera, e embora estivesse bem desgrenhado agora e parecesse menor. Fora isso estava exatamente igual. A mesma pele pálida, os mesmos olhos negros como seus cabelos. Os mesmos olhos de sua mãe. Lembrar-se da mãe a fez se lembrar das duas cicatrizes nas suas costas, que iam desde as omoplatas até quase na cintura. Não valeria a pena parar e olhá-las novamente.  A imagem delas estaria para sempre gravada em sua memória como uma tatuagem na pele. Já haviam se passado quase três anos. Mas a cada dia que ela acordava era como se fosse o dia em que acordou três dias após aquela tarde de quinta feira que mudara sua vida e seu corpo para sempre.
Seus olhos entristeceram e ela soltou um longo suspiro. Será que algum dia eu vou parar de pensar nisso?
Ela afastou os pensamentos com um sacudir de cabeça, despiu-se e foi para o chuveiro. A água estava morna do jeito que ela gosta. Ela ficou embaixo do chuveiro aproveitando a sensação provocada pela água morna que escorria de seus cabelos pelo seu corpo, lhe provocando arrepios maravilhosos. Para ela, aquela era uma das melhores sensações. Debaixo daquela ducha ela se esquecia de todos os problemas e parecia que não havia mais nada no mundo além dela e aquela sensação. Após alguns minutos ela saiu do banho e foi se enxugar. Entrou no quarto e pegou o uniforme no armário para se vestir. O uniforme da Morning Star era tradicional. Camisa branca social, colete azul marinho, gravata azul marinho com listras diagonais douradas, saia xadrez azul marinho com preto e meias três quartos para as meninas e calça preta para os meninos. O símbolo da escola era um escudo também azul marinho com bordas douradas e dividido ao meio por uma fita na diagonal com o nome da escola e uma estrela dourada solitária ao fundo.
Jane saiu do quarto já com a saia e abotoando a blusa e foi até a cozinha onde sua mãe preparava o café.
- Bom dia! – Disse Katherine
- Bom dia... – Respondeu Jane espreguiçando-se
- Dormiu bem querida?
- Ah... Acho que sim.
- E aí, animada para seu primeiro dia?
Jane soltou um suspiro.
- Não sei se posso chamar de primeiro dia... Mesma escola, mesmas pessoas... Mesma rotina.
Ela deu de ombros
- Não vai ter nenhuma novidade – Jane continuou. – Não considero um primeiro dia.
- Mas e seus amigos? Mari, Julia, Erick...? Não está animada para vê-los?
Jane sorriu ao pensar nos amigos. Sentia a falta deles. Por mais que fosse talvez tímida de mais para admitir isso, tinha certeza de que sentia e de que eles sabiam.
- Eles são exceções mãe. – Ela sorriu de novo.
- Muito bem! – Disse Katherine com um sorriso radiante. – Sente-se e tome seu café e depois vá terminar de se arrumar ou vai acabar se atrasando.
- Ok, ok! – Jane fez uma careta de brincadeira, mas concordou e logo começou a se servir.
Seu café da manhã estava do jeito que ela gostava. Sua mãe preparara um bolo de cenoura com cobertura de chocolate que estava delicioso. Para beber, um suco natural de laranja. Estava realmente ótimo. Ao terminar, Jane correu até o banheiro para escovar os dentes e terminar de se arrumar. Olhou-se no espelho mais uma vez, encarando seus olhos negros e profundos como um poço. Realmente eu mudei muito pouco...
Deu de ombros e foi para o quarto onde calçou as meias três quartos e o sapato. Parou de frente para a porta aberta do armário, pegou a gravata e a vestiu. Ficou um tempo pensando se iria de colete ou não. Por fim deu de ombros e o vestiu também. Pegou a mochila e conferiu se não faltava nada antes de sair. Foi até a cozinha se despedir de sua mãe.
- Tchau querida. Tenha um bom dia de aula.
- Espero que você tenha razão – Jane respondeu com seu sempre presente sorriso irônico.
- Algo me diz que vai ser sim... – Katherine respondeu com o seu eterno sorriso animador.
Jane saiu. Sua mochila apoiada em um dos ombros continha apenas o necessário para um primeiro dia de aula tranquilo: Um caderno e um estojo com materiais básicos. Ela seguiu andando pela rua. Não morava muito longe. Um condomínio na Rua Vitor Konder em Blumenau, duas quadras da escola. Então se sentia bem em ir andando em um ritmo confortável. Além disso, gostava de andar porque se sentia livre para pensar. Ninguém para interromper seu raciocínio, sua linha de pensamento e nem para chegar e perguntar "por que você está triste?", ou "você está quieta hoje... Aconteceu alguma coisa?". Essa era uma das coisas que mais a incomodava, e mesmo assim, sempre acontecia. Bastava ela parar um momento para imergir em seus pensamentos que logo aparecia alguém com assuntos qie, normalmente, não a interessavam. Por isso sempre preferia passar parte de seu tempo sozinha.
Após dez minutos de caminhada, ao dobrar na Pedro Silva, ela avistou prédio da Morning Star, uma das melhores escolas da cidade. Respirou fundo enquanto olhava aquele prédio há tanto tempo familiar. O imponente prédio azul com seus três andares suas janelas virada para a rua e para o amplo pátio hexagonal. O grande portão de entrada de grades brancas e pequena cabine de identificação posicionada do lado de dentro e à direita, pouco depois do portão e prédio da secretaria à esquerda. O prédio onde ficavam as salas, logo em frente à secretaria, a escada de acesso, os longos corredores, O pátio, o "Point", onde ela e os amigos se encontravam e que ficava próximo aos bancos de frente para o prédio principal e a secretaria. Estava tudo da mesma forma como era antes. Exatamente como ela se lembrava. Na porta da escola havia vários grupos de alunos aglomerados perdidos nas mais variadas conversas. Jane passou por eles quase sem nota-los. Sua cabeça ainda estava focada no que estava reservado para o seu terceiro primeiro dia de aula na Morning Star. Assim que entrou no pátio buscou os amigos no lugar onde sabia que estariam. Estavam quase todos lá, conversando e rindo. A visão dos amigos fez Jane tentar, sem sucesso, reprimir um sorriso. Principalmente após sua melhor amiga, Mari, a avistar e começar a gritar o nome dela e a apontar para que todos a vissem. "Típico..." ela pensou, sorrindo de volta para os cinco pares de olhos e calorosos sorrisos que se dirigiam a ela, que a fizeram corar levemente e sorrir ainda mais. Caminhou na direção deles passando pelo grupo das outras garotas da sala, interrompendo momentaneamente o reencontro e conseguindo alguns olhares de desprezo e até alguns gritinhos de frustração. Jane não ligava. Podia parecer cruel de sua parte, mas era a sua forma de fazê-las pagar por tudo o que haviam feito a ela e a Mari durante o primeiro ano na Morning Star, dois anos antes.
Ela tentou não pensar muito naquilo. As lembranças não eram das mais felizes e ela não podia se permitir ficar triste naquele momento. Não quando seus melhores amigos sorriam para ela daquele jeito. Ela seguiu seu caminho até eles, mas foi impedida de prosseguir por uma confusão de cabelos loiros e um abraço de tirar o fôlego dado por uma menina de pouco mais de 1,55 de altura.
- Jane! – Disse Mari apertando ainda mais o abraço na amiga – Saudades de você!
Jane retribuiu o abraço o máximo que sua falta de ar lhe permitia. Aliás, era uma das coisas que a intrigavam em Mari. Como ela, tão pequena e magra poderia ter tamanha força num abraço. Mas ela admitia... Sentiu falta dos abraços de urso da melhor amiga. Ela e Mari se conheciam há quatro anos e eram tão próximas quanto se fossem irmãs. Estava feliz por revê-la e, claro, por rever os outros também.
- Mari – Disse ela forçando a voz como se estivesse sufocando – Se você puder me soltar, minhas costelas agradecem...

Mari liberou o abraço e ficou olhando pra ela e sorrindo, enquanto Jane falava com os outros e dizia coisas como "a quanto tempo" ou "cara, que saudades de você!".
Quando falou com todos, Jane olhou em volta e percebeu que faltava alguém. Julia. O que era estranho porque ela sempre chegava cedo.
- E a Julia? – Perguntou.
- Não sei... Já era pra ela ter chegado. – Respondeu Marcos.
- É o primeiro dia gente... Ela sempre se atrasa no primeiro dia porque sempre se arruma mais... – Disse Mari.
- Ah é... Vocês lembram-se do ano passado? – Disse Erick – Ela apareceu aqui com tanto blush que o Marcos perguntou se ela tinha levado um tapa na cara.
Mari soltou uma gargalhada
- E isso quase fez ELE levar um tapa na cara!

Todos começaram a rir ao lembrar do incidente até uma voz familiar interrompê-los

- Qual é a graça gente?

Todos se viraram para a fonte da voz, que caminhava na direção deles e ficaram perplexos com o que viram. Mesmo Jane não conseguiu disfarçar a surpresa da cena que presenciou.
Era Julia, praticamente irreconhecível.
Até o ano anterior, Julia era uma garota bonita. Com sua pele de tom moreno claro, olhos castanhos e cabelos escuros, ondulados e curtos.
Mas pelo que todos puderam ver agora Julia ainda era a garota bonita de pele morena e olhos castanhos. Mas seus cabelos já não eram escuros e muito menos curtos. Estavam chegando às costas e estavam vermelhos. Não um vermelho, ruivo natural, mas um vermelho forte e intenso. Tão forte que era quase impossível acreditar que eles não perceberam ela chegar, considerando que metade da escola olhou pra ela pelo menos duas vezes.
Todos ainda estavam de boca aberta tentando entender o motivo daquela mudança repentina.
- O que foi gente? Por que essas caras? – Julia disse sorrindo diante da reação dos amigos.
- Mas o que...? – Começou Erick. Ele deu uma cutucada discreta em Jane e nos demais. Eles entenderam a dica.
- Juh... O que você fez com seu cabelo? – Disse Jane tentando ao máximo forçar uma expressão convincente de desaprovação.
- Vocês não gostaram? – O sorriso de Julia morria lentamente em seu rosto.
- Pra quem gosta de parecer um palito de fósforo aceso... – Falou Scott sem conseguir segurar o riso.
- Com essa pele ela está mais pra uma Caipora – Falou Marcos.
Todos começaram a rir, inclusive a própria Julia
- Acho que você quer ainda quer levar aquele tapa, não quer Marcos?
Marcos sorriu e se inclinou na direção dela:
- Pode tentar – Ele disse com um sorriso maldoso.
Mari provocou:
- Eu dava dois, só pelo abuso!
Julia começou a correr atrás dele, ambos dando círculos em volta dos outros, com Julia aos berros e Marcos lançando mais e mais provocações à amiga. Por fim Marcos se escondeu atrás de Scott, que assim como os outros amigos, não conseguia parar de rir.
Mari aproveitou a trégua nas brincadeiras para dar um abraço bem forte na amiga.
- Garota, o que você come pra ser tão forte nos abraços?
- Eis uma pergunta que eu gostaria de ver respondida – Falou Jane com um sorrisinho.
Estavam todos conversando entre si, contando como cada um havia passado as férias. Julia passou as férias no Rio com os tios, Jane foi com a Mãe visitar Gramado e convidaram Mari e a mãe para ir com elas. Scott, que mora sozinho, recebeu do tio que o ajuda uma passagem pra ir com ele conhecer a Europa. Marcos e Erick foram os únicos que não viajaram naquele ano e passaram quase todo o período de férias jogando vídeo game ou indo a eventos no centro, o que era comum naquela época do ano devido ao aumento de turistas na cidade.
Estavam todos concentrados no assunto até que Mari chamou a atenção de todos pra uma pessoa. Um garoto. Um aluno que ela nunca tinha visto na escola ou na área. Ele estava parado perto das escadas que davam acesso as salas. Era alto, aproximadamente 1.80, pele levemente corada, como de alguém que costuma pegar sol com frequência, cabelos escuros arrepiados e olhos verdes azulados. Perguntou aos amigos se algum deles o tinha visto ou se o conheciam.
- Não me lembro de ver alguém parecido por aqui... – Disse Marcos.
- Aluno novo, sem dúvida... – Disse Scott.
- Hum... Qual será a sala dele? – Perguntou Mari – Ele parece ter a nossa idade. Talvez fique na nossa sala.
Jane bufou:
- Desde que ele não se junte com o Thales e o pessoal dele, por mim está ótimo.
Scott olhou para ela.
- Você nem conheceu o cara e já acha que ele pode ser um babaca igual ao Thales? Vai que ele vem pro nosso lado.
Ele sorriu ao terminar a frase, como que brincando.
Julia não perdeu tempo:
- Eu não reclamaria nem um pouco de ter ele andando com a gente... Ele até que é gatinho, não acham meninas?
Mari concordou imediatamente e Jane se limitou a um meio sorriso e uma balançada de cabeça em reprovação à amiga.
Marcos, é claro, aproveitou a chance.
- Acho que o fogo do seu cabelo desceu para o corpo Julia. Sabia que tinha que ter uma raz...
Ele não conseguiu terminar a frase porque Julia já batia em seu braço, provocando risos nos demais. Nesse momento o primeiro sinal soou pela escola, marcando o começo da aula. Jane olhou na direção das escadas onde o novato estava, mas o garoto já havia sumido.
Provavelmente foi ver a qual turma pertencia e em que sala iria ficar.
Para ela não fazia muita diferença. Ele era só mais um aluno.

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