¤CONTO II¤

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~Conto II: O morto-vivo~

Mais um dia de chuva. Mais um dia cinzento, macabro. Não é à toa que eu odeio dias de chuva, e odiava especialmente esse dia. O dia do enterro do meu filho. Morreu num acidente de carro, precisamente num dia de chuva, à precisamente uma semana atrás. Pior de tudo, eu estava com ele e não me aconteceu rigorosamente nada. A vida não é irónica? Alterou completamente o ciclo natural da vida. Pelo menos da minha. - Maya, está na hora. –ouvi. O que não me apetece era agora ir ter que enterrar o meu filho, que até hoje não perceberam como é que ele morreu. - já vou. –respondi.– bem que podias ter ido tu seu estupor. Mas acredito que o MEU filho esteja no céu e tu com certeza ias para o inferno. –continuei, olhando diretamente nos olhos do meu marido Mitch. Era um ótimo marido, especialmente no que toca a traição. Sempre me traiu, assim como eu lhe fazia por vingança. Era fantástico o sexo com o patrão dele. Fiz um esforço e levantei-me daquele sofá com mais anos que o meu falecido filho. Além disso uma senhora de 56 anos não tem a força de uma de 20 ou 30. Caminhei até ao espelho da casa de banho. Estava linda, apesar da idade se notar abaixo dos meus olhos, queixo... Fui até ao carro, sempre acompanhada do meu marido corno. Estava a pensar ainda mesmo esta noite o trair de novo, mas estava muito abalada com a morte do meu filho... Ainda nem me tinha dado netos... Oh John... Foste tão cedo!!
** P.O.V John **
Tudo começou com uma repentina queda de temperatura no meu corpo. Algo assim como se algum elemento refrigerante fosse injectado no meu sangue e ele se espalhasse rapidamente por todo meu organismo. Fiquei rígido como um cadáver, e a minha consciência abandonou-me instantaneamente. Uma sensibilidade térmica começou, ao que me parece na ponta dos dedos das mãos e espalhou-se imediatamente pelo corpo todo. E não saberia dizer quanto tempo levou para essa sensação passar dos membros para o resto do corpo, até chegar ao coração e invadir o cérebro, levando-me ao colapso. Eu sofri um "apagão". Isso é o que acontece quando o cérebro "desliga" completamente e lança-nos numa total escuridão. Não sei se o que desligou primeiro foi o cérebro ou o coração. Provavelmente foi o cérebro, pois é ele que controla o fluxo sanguíneo e os movimentos do coração. O cérebro desliga, o coração para, a máquina fica imobilizada. E aí, pouco a pouco, começa aquele relaxamento muscular, aquela distensão nos nervos, aquela rigidez cadavérica. Houve um momento, um momento tão breve,em que eu tive consciência do que estava a acontecer. Mas foi tão rápido que nem tive tempo de sentir medo. Então mergulhei na escuridão total de um túnel sinistro, que parecia não ter fim. Quanto tempo estive naquele túnel escuro, de trevas tão impenetráveis, onde nada, nada mesmo parece existir? Pareceu-me uma eternidade, embora na medida do tempo,possa ter durado apenas alguns segundos. Foi, com certeza, muito breve aquele momento de total ausência, de queda no vazio, em que eu fui atirado.. Pouco a pouco, como uma cidade que ficou as escuras, pequenas luzes começaram a acender. Minúsculos pontos luminosos, que eram restos de lembranças, experiências vividas, que me vinham na forma de sons longínquos, imagens sem cores fixas nem contornos definidos. Pouco a pouco,as imagens foram se estabilizando, os sons tornaram-se audíveis, e eu já podia identificar algumas das sensações que me aconteciam. Percebi que estava deitado numa sala e havia muitas pessoas á minha volta. Um aroma de flores e velas acesas me feriam as narinas. Ouvi soluços e, ao que me pareceu, alguém estava a chorar á minha cabeceira. As imagens, agora estabilizadas, mostravam uma sala cheia de pessoas, decorada com muitas coroas de flores, crucifixos e algumas bandeiras e estandartes encostados nas paredes, que reconheci como sendo de alguns clubes de serviço e organizações. Sim, lembrei-me que pertencia a algumas delas, e ainda pertenço. Senti-me em casa. Aquela sensação de vazio absoluto e completa ausência de identidade começavam-se a desvanecer. Talvez eu tivesse desmaiado em algumas daquelas cerimónias ou reuniões que costumava frequentar. Não teria sido a primeira vez. Sorri. Intimamente comecei até a achar graça daquela situação. Agora percebi a razão disso tudo. Tivera uma crise de catalepsia, e provavelmente os próprios médicos, teriam se enganado e me dado como morto. Tive que conter-me para não soltar uma sonora gargalhada. Imaginei o reboliço que seria, se de repente eu me levantasse daquele caixão cheio de flores e começasse a rir como um sarcástico demónio que acaba de enganar o padre que tentou exorcizá-lo. Pensei abrir lentamente os olhos e começar a respirar de uma forma tão leve que fosse imperceptível aos presentes naquela sala. Assim, de repente, alguém perceberia que eu estava vivo e a coisa toda seguiria um processo normal, com a chamada de um médico, a remoção para um hospital, enfim, a coisa toda como deveria ser, e não a simples cena de um filme de terror , com o morto se levantando do caixão simplesmente, rindo como um sátiro perverso, provavelmente matando de susto, ou de enfarto, alguns dos velhos senhores e senhoras que ali estavam.. Mas apesar de todo o meu esforço, não consegui abrir os olhos. Eles não se moviam. Parece que um imenso peso havia sido colocado em minhas pálpebras, de tal modo que nem toda a força muscular que eu possuía seria capaz de mover as pálpebras que me cobriam os olhos. No entanto, eu podia ver tudo! Estavam ali todos os meus parentes e amigos. Outros não tão amigos, mas, de alguma forma, conhecidos. Todos pareciam tristes, mas não deixavam de conversar, de tratar de seus assuntos cotidianos, como se a presença da morte entre eles não constituísse um motivo de pausa e reflexão, mas sim, apenas mais uma oportunidade para as pessoas se encontrarem e tratarem de negócios de seu interesse. Mas não me aborreci com isso. Eu sempre entendi que a vida não deve ser constrangida nem em presença da morte, e eu mesmo já aproveitara alguns funerais para tratar de assuntos que me interessavam. Agora era o meu funeral que servia a esses propósitos, mas tal como eu via, tudo aquilo logo se transformaria numa grande piada, que estaria em todos os jornais, como um acontecimento inusitado que se transformaria, provavelmente, numa lenda urbana. Eu era o morto que ressuscitara, o morto que estava vivo, o que seria enterrado vivo. Que belo assunto para os jornais! Que fantástica experiência para uma obra literária... Mas, no entanto, eu não conseguia abrir os olhos, nem movimentar os lábios para aquele sorriso de Monalisa, que eu pensava, seria o primeiro sinal da minha volta para o mundo dos vivos. E logo percebi também que não conseguia respirar. Os músculos peitorais não se movimentavam, os pulmões não funcionavam, não se percebia nenhum movimento. "Tudo bem", pensei. "Mantém a calma", disse para mim mesmo. Os meus sinais vitais voltarão e todos perceberão que eu estou vivo. Procurei respirar com calma, pausadamente, como fizera em outras oportunidades, em que desmaiara. Mas o meu sistema respiratório não respondia. Procurei mover as pontas dos dedos dos pés e das mãos. Nada. Absoluta rigidez em todos os membros, nenhuma resposta muscular nada que pudesse indicar que eu estava vivo. Comecei a ficar preocupado. Gritei, mas o som não saiu da minha garganta. Eu ouvia as pessoas, mas ninguém podia me ouvir. O desespero começava agora a tomar conta de mim. O que era agora? Um padre! Um padre encomendava o meu corpo! Meu Deus! Devolva o meu corpo! Eu estou vivo! Socorro! Não! Por favor, não fechem esse caixão, não, por favor, não... Mas a tampa fechou-se sobre o meu corpo. De novo a escuridão. Mas não, eu estou a ver tudo. Estão a levar-me para o cemitério. Um cortejo de alguns minutos. Pessoas que caminham lentamente. Palavras á beira de um túmulo. Meu Deus, eu estou a ser enterrado! Parem! Eu estou vivo! Não! Não deitem essa terra em cima de mim! Mas não adiantaram os meus gritos , o meu desespero, as minhas súplicas. Sei que em algum momento os meus músculos recuperarão os movimentos, os meus sistemas voltarão a funcionar, a minha mente voltará a ter contato com o meu corpo e os sinais vitais reaparecerão. Mas então será tarde demais. Prevejo esse momento e sinto já o desespero, o desconforto e o pânico que então me invadirá quando eu acordar deste transe e descobrir que fui enterrado vivo! A escuridão total! A dificuldade para respirar! O cérebro a morrer lentamente pela falta de oxigênio! O medo de que tudo aquilo que eu nunca acreditei seja finalmente verdade! Se existe outra vida, como será ela? Daqui há alguns anos o meu esqueleto será desenterrado para dar lugar a outro morto. Os meus ossos serão deitados naquele poço onde todas as identidades finalmente se confundem. O meu único consolo, se é que se pode chamar isso de consolo, é o susto que os coveiros vão apanhar quando virem que eu estarei todo revirado dentro do caixão. Então saberão que eu fui enterrado vivo. E virarei uma nova lenda urbana.

¤FIM DO CONTO II¤

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