9

88 1 0
                                    

O primeiro devaneio de Gawain 

Aquelas viúvas soturnas. Com que propósito Deus as pôs nesta trilha de montanha à frente? Será que ele quer testar a minha humildade? Não foi suficiente ele me ver salvar aquele casal gentil e também o menino ferido, matar um cão demoníaco, dormir menos de uma hora numa cama de folhas encharcadas de orvalho antes de acordar e descobrir que as minhas tarefas ainda estão longe de serem concluídas, que Horácio e eu temos que partir de novo, não montanha abaixo rumo a uma aldeia acolhedora, mas por mais uma trilha íngreme acima sob um céu cinzento? No entanto, ele pôs aquelas viúvas no meu caminho,não há dúvida, e eu fiz bem em me dirigir a elas educadamente. Mesmo quando começaram a lançar insultos idiotas e a jogar punhados de terra no traseiro de Horácio —como se ele pudesse entrar em pânico e fugir em vergonhosa disparada! —, eu não lhes lancei nem sequer um olhar de viés, falando em vez disso no ouvido de Horácio,lembrando-lhe de que nós tínhamos que enfrentar com galhardia todas essas dificuldades,pois uma provação muito maior nos aguardava no alto daqueles picos distantes, onde nuvens de tempestade se acumulavam. Além disso, aquelas mulheres maduras, com seus andrajos esvoaçantes, um dia já foram inocentes donzelas, algumas tendo possuído graça e beleza, ou pelo menos o frescor que com frequência agrada da mesma forma os olhos de um homem. Ela própria por acaso não era assim, aquela de quem eu às vezes me lembro quando vejo se estender diante de mim, vazia e solitária, uma terra tão extensa quanto a distância que me é possível cavalgar no decorrer de um dia sombrio de outono? Embora não fosse nenhuma beldade, ela era encantadora o bastante para mim. Só a vi uma vez,quando eu era jovem, e nem mesmo sei se cheguei a falar com ela. No entanto, sua imagem às vezes me volta à cabeça, e acredito que ela tenha me visitado em meus sonhos,pois muitas vezes acordo sentindo um misterioso contentamento, mesmo enquanto meus sonhos me somem da lembrança. 

Eu estava sentindo as alegrias remanescentes de uma sensação como essa quando Horácio me acordou esta manhã, batendo as patas no chão macio da floresta, onde eu havia me deitado depois dos esforços da noite. Ele sabe muito bem que eu não tenho mais o mesmo vigor de antes, que depois de uma noite como aquela não é fácil para mim dormir apenas uma breve hora antes de partir de novo. No entanto, vendo o sol já alto, brilhando sobre o frondoso dossel da floresta, ele não me deixou continuar a dormir. Ficou batendo e batendo as patas no chão, até que eu me levantei, a cota de malha rangendo. A cada dia que passa, mais amaldiçoo esta armadura. Será que ela realmente me salvou de muita coisa?Um ou outro pequeno ferimento, no máximo. É a essa espada, não à armadura, que devo a minha saúde duradoura. Eu me levantei e observei as folhas à minha volta. Por que tantas caídas, se o verão ainda está longe do fim? Estariam essas árvores doentes, apesar de ainda nos oferecerem abrigo? Um raio de sol que tinha conseguido atravessar a copa das árvores batia no focinho de Horácio, e eu vi que ele balançava a cabeça de um lado para o outro,como se aquele raio fosse uma mosca enviada para atormentá-lo. Ele também não havia passado uma noite agradável, ouvindo os barulhos da floresta em volta dele, perguntando-se em que perigos o seu cavaleiro teria se metido. Embora zangado por meu companheiro ter me acordado tão cedo, quando fui para perto dele apenas lhe envolvi o pescoço carinhosamente com os meus dois braços e, por um breve momento, pousei minha cabeça em sua crina. Horácio tem um dono severo, eu sei. Eu o forço a seguir adiante mesmo sabendo que ele está cansado, ainda o xingo quando não fez nada de errado. E esse metal todo é um fardo tanto para mim quanto para ele. Quantas distâncias mais nós ainda vamos cavalgar juntos? Eu fiz carinho nele e disse: "Logo, logo vamos encontrar uma aldeia simpática, e então você vai fazer refeições bem melhores ao acordar do que essa que acabou de fazer". 

Eu disse isso achando que o problema do sr. Wistan estava resolvido. Mas nós mal tínhamos começado a descer a trilha, nem sequer tínhamos saído da floresta ainda, quando nos deparamos com o monge coxo, com os sapatos quebrados, andando às pressas na nossa frente rumo ao acampamento de lorde Brennus. E o que ele nos conta senão que o sr.Wistan havia escapado do mosteiro, deixando mortos os que o perseguiram durante a noite,muitos deles não mais que ossos queimados. Que guerreiro! Estranho como meu coração se encheu de alegria ao ouvir a notícia, muito embora ela trouxesse de volta uma árdua tarefa que eu pensava já ter ficado para trás. Então Horácio e eu deixamos de lado nossos sonhos de forragem, carne assada e boa companhia, e seguimos mais uma vez colina acima.Mas, pelo menos, temos o consolo de estarmos nos distanciando cada vez mais daquele maldito mosteiro. No meu coração, é verdade, eu sinto alívio pelo fato de o sr. Wistan não ter perecido nas mãos daqueles monges e do desgraçado do Brennus. Mas que guerreiro! O sangue que ele derrama num único dia faria o Severn transbordar! Ele estava ferido, o monge coxo achava, mas quem pode se dar ao luxo de acreditar que alguém como o sr.Wistan vá se deitar e morrer facilmente? Como eu fui idiota de deixar o jovem Edwin fugir daquele jeito. Agora é óbvio que os dois vão acabar se encontrando. Foi muita idiotice a minha, mas, também, eu estava muito cansado naquela hora e, além do mais, não me passava pela cabeça que o sr. Wistan pudesse escapar. Que guerreiro! Se fosse um homem do nosso tempo, ainda que saxão, ele teria conquistado a admiração de Arthur. Até mesmo o melhor de nós temeria tê-lo como adversário. Ontem, porém, quando o vi enfrentando o soldado de Brennus em combate, eu tive a impressão de notar uma pequena fraqueza no seu lado esquerdo, ou será que isso era só mais um dos seus estratagemas engenhosos? Se o observar lutando mais uma vez, vou saber com certeza. Mas ele é um guerreiro habilidoso ainda assim, e só mesmo um cavaleiro de Arthur iria perceber uma coisa dessas, mas eu tive essa impressão quando estava assistindo à luta. Eu disse comigo mesmo: olhe ali, uma pequena falha do lado esquerdo. Uma falha da qual um adversário astuto poderia muito bem tirar vantagem. Apesar disso, qual de nós não teria respeito por ele? 

O Gigante EnterradoOnde histórias criam vida. Descubra agora