14.

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O segundo devaneio de Gawain

Maldito vento. Será um sinal de que há uma tempestade a caminho? Horácio não vai se importar nem com o vento nem com a chuva, só com o fato de uma estranha estar montada nele agora, em vez do seu velho dono. “É só uma mulher cansada, que está precisando mais do seu lombo do que eu. Então, carregue-a com boa vontade”, eu disse a ele. Por outro lado, o que é que ela está fazendo aqui? Será que o sr. Axl não vê como ela está ficando frágil? Será que ele perdeu o juízo, para tê-la trazido para uma altura inclemente dessas? Mas ela segue adiante com tanta determinação quanto ele, e nada do que digo os faz desistir. Então, aqui estou eu, me arrastando a pé, com uma mão na brida de Horácio, carregando esta armadura enferrujada. “Nós não tivemos sempre o hábito de servir às senhoras com gentileza?”, sussurro para Horácio. “O que poderíamos fazer? Continuar cavalgando e deixar esse bom casal para trás, puxando o bode deles?”

Eu os vi primeiro como pequenas figuras lá embaixo e imaginei que eles fossem os outros dois. “Está vendo lá embaixo, Horácio?”, eu disse então. “Eles já conseguiram se reencontrar e já estão vindo aí, como se aquele sujeito não tivesse sofrido ferimento algum dos homens de Brennus.” Horácio olhou para mim pensativo, como quem pergunta: “Então, Gawain, esta vai ser a última vez que vamos subir esta montanha sombria juntos?”. A única resposta que lhe dei foi passar a mão com carinho pelo seu pescoço, embora tenha pensado comigo: “Aquele guerreiro é jovem e é um adversário terrível, mas talvez eu tenha descoberto uma maneira de derrotá-lo, quem sabe? Quando ele estava destroçando o soldado de Brennus, eu vi uma coisa. Outra pessoa não veria, mas eu vi. Uma pequena abertura na esquerda para um adversário astuto”.

Mas o que Arthur iria querer que eu fizesse agora? A sombra dele ainda paira sobre a nossa terra e me engolfa. Será que ele iria querer que eu me atocaiasse como uma fera à espera da presa? No entanto, onde se esconder nessas colinas nuas? Será que o vento sozinho poderia esconder um homem? Ou será que eu devo subir em algum precipício e atirar um pedregulho em cima deles? Não seria um comportamento digno de um cavaleiro de Arthur. Prefiro me mostrar abertamente, cumprimentá-lo, tentar mais uma vez um pouco de diplomacia. “Dê meia-volta, senhor. O senhor vai pôr em perigo não só a si mesmo e ao seu companheiro inocente, mas a todo o bom povo desta terra. Deixe Querig para quem já a conhece bem. Como o senhor vê, eu estou agora mesmo a caminho de lá para matá-la.” Mas esses apelos foram ignorados antes. Por que ele iria me ouvir agora que já chegou tão perto, e com o menino mordido para guiá-lo até a toca dela? Será que eu cometi uma tolice quando salvei aquele menino? Por outro lado, o abade me causa tamanho horror, e eu sei que Deus vai me agradecer pelo que fiz.

“Eles estão vindo com tanta segurança, que é como se tivessem um mapa”, eu disse para Horácio. “Então, onde vamos esperar? Onde vamos enfrentá-los?”

O bosque. Eu me lembrei dele então. Estranho como as árvores crescem com tanto viço lá, quando o vento deixa tudo em volta tão árido. O bosque vai oferecer cobertura para um cavaleiro e seu cavalo. Eu não vou atacá-los de emboscada como se fosse um bandido, mas por que deixar que eles me avistem quase uma hora antes do nosso confronto?

Então, piquei Horácio com a espora, apesar de ela pouco afetá-lo hoje em dia, e nós atravessamos a beira alta da terra, sem subir nem descer, fustigados o tempo inteiro pelo vento. Ambos ficamos aliviados ao chegar àquelas árvores, embora elas cresçam de um modo tão estranho que não há como não se perguntar se o próprio Merlin não lançou um feitiço ali. Que sujeito era o mestre Merlin! Houve um tempo em que pensei que ele tivesse enfeitiçado a própria morte, mas agora até mesmo Merlin já foi ao encontro dela. Onde será que ele reside agora, no céu ou no inferno? O sr. Axl pode acreditar que Merlin era um servo do diabo, mas os poderes dele muitas vezes foram usados de maneiras que fariam Deus sorrir. E que ninguém diga que lhe faltava coragem. Não foram poucas as vezes em que ele se expôs a saraivadas de flechas e machados furiosos ao nosso lado. Este bem pode ser o bosque de Merlin, criado por ele com um único propósito: para que um dia eu pudesse me abrigar aqui para esperar aquele que pretende desfazer a nossa grande obra daquele dia. Dois de nós cinco caíram diante da dragoa, mas o mestre Merlin ficou ao nosso lado, movimentando-se com calma mesmo estando ao alcance da cauda de Querig, pois de que outra forma ele poderia realizar o seu trabalho?

O Gigante EnterradoOnde histórias criam vida. Descubra agora