Capitulo 1 - VIDA

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Vou admitir: 2022 não tem sido muito legal comigo... Perdi o meu emprego na Fabrica e flutuo entre meu sub-emprego como atendente em uma loja de conveniências num dos bairros mais mal-frequentados da cidade e minha cama num bairro tão mal frequentado quanto. "Não deve ser tão ruim assim" você deve estar pensando... Deixa eu te explicar uma coisa sobre minha cidadezinha no meio do nada: É tudo um tédio aqui: As garotas estão todas na faculdade, os velhos estão surgindo aos potes em busca de um fim de vida calmo, os bares só servem pra afogar as mágoas enquanto você pensa na sua não-mais-possível vida em Nova Iorque.

- Acorda, Luke - Disse meu chefe, se aproximando de mim, limpando as mãos engorduradas no avental
- E aí, Chefinho - Respondi, de uma forma sarcástica e inamigavel, não estava muito afim de socializar.
- Eu vou dar uma saída, ouviu? Vou até a Dona Margareth fazer uma entrega e talvez fique pra comer um bolo e tomar aquele café horrível que ela faz.
- Vai entregar mais salame pra ela? A velha ainda da no couro mesmo, não é? - Respondi, observando a movimentação com o canto dos olhos.
Meu chefe era um homem de meia idade, também desiludido com a vida. Herdou o mercadinho dos pais e por respeito aos velhos manteu o negócio rodando. Barton era o seu sobrenome, Johan Barton o nome completo - Por mais que me lembrasse acho que nunca dirigi a palavra a ele usando seu primeiro nome ou outra coisa que não fosse "chefinho" ou "sr. Barton".
- Sabe como é né, moleque? - Ele disse, colocando seu chapéu e saindo para a rua.
- Pra falar a verdade não sei - Respondi a ninguém.
Mais um longo dia. O tédio me dominaria em alguns segundos e quando eu acordasse de meu transe estaria lendo alguma revista sensacionalista. Eu estava pra começar meu ritual diário quando a porta se abriu e meu olhar se desviou para a mesma. Meus olhos cerraram enquanto eu tentava entender a figura que estava parada no batente da porta.
- Oi. - Disse a figura
Eu pisquei uma ou duas vezes até conseguir visualizar exatamente o que estava ali. Um homem de aproximadamente um metro e noventa, usando um sobretudo branco com símbolos nas mangas, uma calça que combinava e óculos escuros.
- P-Ahm, posso ajudar com algo, cara? - Eu disse, enfim.
- Eu só quero uma cerveja, vocês tem alguma coisa?
- No fundo - Apontei para as geladeiras embutidas atrás das dezenas de prateleiras
- Brigado, garoto. - Respondeu o homem, indo em direção as mesmas.
Se tinha uma convenção de ficção científica rolando ninguém tinha me avisado, aquele cara parecia ter saído diretamente de um filme, um filme bem trash, com aquelas estéticas exageradas da década de 80. O homem se virou, começou a vir em direção do caixa abrindo a cerveja com as mãos, ele bebeu um gole e botou a garrafa no balcão enquanto puxava sua carteira do bolso de trás das calças. Rapidamente passei a embalagem pelo leitor de código de barras e anunciei o preço:
- São quatro dólares, algo mais? - Respondi de forma protocolar.
- Não não, garoto, só isso. - O homem respondeu finalmente tirando a carteira do bolso. Ele parecia estar com os bolsos cheios, foi tirando tudo que tinha e botando em cima do balcão.
Já tinha pelo menos uma mini coleção de artigos indefinidos em cima do balcão: Moedas de algum lugar que não dali, fiapos de roupa, um mini bastão cromado com botão no meio - Aqueles pra bater em vagabundos, sabe? - Um pacote de goma de mascar e finalmente os quatro dólares.
- Taí, Garoto - Ele disse, botando os quatro dólares no balcão de forma ordeira - Sabe me dizer que horas são?
- São... - Eu comecei a frase, esticando o pescoço procurando pelo relógio - Oito - Encerrei minha frase assim que percebi que o homem não estava mais ali.
Sem sinal, nem mesmo vi a porta abrir. O cara desapareceu, e pra piorar: Deixou suas tralhas em cima do balcão. Chiclete, fiapo , bastão e moedas. Observei cada Item com cuidado e me senti fortemente atraído por aquele bastão brilhoso.
- Que diabos... Não é nada demais brincar com isso - Levei minha mão até próxima ao bastão
- E aí, Luke! - O "Olá" foi tão súbito que me fez bater a cabeça no armário de cigarros
- Fala, Mike. Como cê tá? - Respondi, escondendo minha dor óbvia.
- Te assustei cara? - Debochou Mike, se aproximando do balcão.
- Você sempre me assusta, o que vai querer hoje? Já estourei minha cota de Snickers grátis pra você.
- Não não! Luke, minha visita hoje é puramente relacionada a negócios
Mike, natural como sempre, observava todo ambiente enquanto preparava seu discurso, antes de ingressar em sua conversa semi-interessante o mesmo puxou uma tira de goma de mascar de dentro do pacote esquecido pelo esquisitão sci-fi de alguns minutos atrás.
- Você lembra do Sal? - Mike perguntou
Sim, eu lembrava do Sal, um "empresário autônomo" como Mike gostava de defini-lo. O cara não passava de um "Mr. John" para mafiosos velhos das mais diversas regiões dos estados unidos.
- Vou morder... O que tem o Sal?
- Ele tá precisando e algumas pessoas pra mover alguns materiais, Luke... Ouvi falar que ele paga bem. - Assim que completou a frase Mike botou a tira inteira de chiclete na boca, empurrando-a violentamente com o dedo indicador - MshchQue coisha Diferenths esse Sxchiclete, cara... Que chiclete é esse?
- Eu sei lá, um cara deixou aí.
Mike levantou o indicador como se precisasse de silêncio, mexeu o dedo em direções aleatórias, fechou os olhos e respirou fundo, buscando suas próximas palavras.
- Esse cara tem bom gosto... - Continuou, degustando o chiclete profundamente - De qualquer forma, acho que deveria considerar, Luke... Você tem experiência no ramo de carga, trabalhou naquela maldita fábrica dirigindo pra lá e pra cá o tempo todo. Não acha que é hora de fazer dinheiro de verdade?
- Sabe como me sinto trabalhando para pessoas de índole questionável né?
- Sei sim: Poderoso.
Devo dizer que a presença de espírito de Mike aterrou praticamente toda minha vontade de ir contra os seus planos. Dinheiro não iria fazer mal, transporte não seria um problema e já fizemos negócios antes, fora as ameaças, olhadas tortas e as armas automáticas não costumávamos ter muitos problemas ou receios, era só ir do ponto A ao ponto B e tava tudo certo. Quem sabe eu não ficava alguns dólares mais rico.
- Onde? Quando?
- Fico feliz em você ter perguntado, amiguinho! - Respondeu Mike, enfiando mais um chiclete na boca sem nem ao menos ter cuspido o anterior. - Posso ficar com isso? - Disse, botando o pacote de chiclete na frente do meu rosto e mastigando freneticamente.
- Como quiser. - Assenti, limpando as gotículas de saliva da minha cara. - É todo seu, agora me fala: Qual é a do trabalho?
- Como disse... Transporte. Os detalhes nunca são dados de antemão ou melhor: Nunca são dados. Sigilo é absoluto, se não me engano a carga ta vindo direto de Las Vegas. Dinheiro, muito provavelmente.
- Dinheiro de Casino? Tem certeza que isso é seguro?
- Se fosse seguro não teria vindo do Sal, você aceita ou não? - Mike pegara ainda mais uma tira de chiclete antes de se auto-censurar e colocar o resto do pacote no bolso.
- Como recusar o pedido de um rapaz tão simpático como você, Mike? Aceito. Você tem meu telefone, me liga quando tiver tudo certo. Agora já posso me livrar de você?
- Considere-se livrado, amigão! Alegre-se! - Disse ele, dando um tapinha no meu ombro
- Sim sim - Eu disse, saindo de trás do balcão buscando outras coisas pra fazer
Mike agradeceu novamente pelo chiclete e saiu porta afora. Eu tinha algumas horas pra pensar nas mil e uma formas que transportar dinheiro sujo para um facilitador da mafia poderia dar errado. A Policia vai me pegar, talvez... Posso dar uma de joão sem braço e falar que não fazia ideia do que tava sendo transportado. Ou talvez eu desse menos sorte e fosse atacado por enviados de outros facilitadores: Eu levaria uma bala ou outra, talvez em algum lugar que não fosse importante ou que não fosse doer tanto.

O tempo passou voando, eu já varria as prateleiras de trás quando meu chefe finalmente retornara de seus afazeres.
- Chefinho! - Disse, cumprimentando-o com um chapéu imaginário.
- Não me venha com piadas de comedor de velhas.
- Eu? Imagine só! - Ri com o canto da boca enquanto terminava de varrer os últimos cantos
- Se quiser ir pra casa fique a vontade, eu cuido do resto. - Os olhos do homem correram pela Loja e pousaram sobre o Balcão.
O homem se esticou e olhou por cima do balcão, na bancada onde a caixa registradora e as moedas repousavam
- Essas coisas são suas? - Perguntou, mostrando o bastão e as moedas
- Ah, um es-Um amigo meu deixou isso comigo - Larguei a vassoura e tirei o avental enquanto caminhava em direção do chefe - Ele fez uma viagem pra Porto Rico e trouxe isso de lá.
Eu tirei os objetos da mão do meu chefe tentando parecer o mais natural possível. As moedas pouco me importavam, mas aquele bastão poderia ter alguma utilidade aquela noite. Sempre fui cagão demais pra comprar uma arma de verdade então qualquer sinal de "proteção" extra podia me dar uma vantagem, especialmente um bastão retrátil como aqueles que eram usados pra derrubar vagabundos.
- Então, to indo, chefinho!
Não esperei pela resposta, com um movimento brusco sai pela porta de vidro pra rua. Era uma sexta feira, a cidade estava se pondo pra dormir, não tinha muita gente na rua a não ser as mesmas que eu sempre via: Os caras que trabalhavam no escritório contábil a frente da loja, uma meia duzia de transeuntes e um ou dois policiais que bebericavam de suas canecas de café trazidas da estação.

VRMMMMM
Meu celular vibrou intensamente
VRMMMMM
Agora meu celular começava a tocar o tema de vitória do jogo Final Fantasy. Decidi que era hora de parar de curtir a musica e finalmente atender.
- Alô?
- Luke, já saiu?
- Acabei de sair... - Estava tentando confirmar se já íamos a "trabalho" de forma sutil
- É hora de fazer dinheiro.
Lá estava a confirmação que eu precisava. Meu coração aumentou em quarenta batimentos por segundo, talvez um pouco mais... Não saberia dizer sem ter um ataque hipocondríaco achando que teria um infarto ou coisa do tipo.
- Tudo bem, aonde?
Ouvi uma buzina do outro lado da rua, novamente senti o susto se transformar em uma sensação de dor física. Desliguei o celular e cruzei a rua.
- Vai se f-- - Fiz um som irreconhecível e entrei no carro, coloquei o cinto de segurança e bati no painel ritmicamente. - Vai logo antes que eu mude de ideia.
O carro deu a partida por noite a fora, cruzando as ruas em baixa velocidade - Os postes de luz iluminavam o carro esporadicamente, a cada facho de luz que passava pela minha cara eu sentia que toda a minha realidade estava sendo checada. O que diabos eu estava fazendo? Eu cruzava as pernas com um nível de força esmagador, seria dramático se não fosse triste.
- Luke? - Mike disse meu nome, desviando o olhar em minha direção por uma fração de segundos - Abre o porta luvas, cara.
Eu já estava completamente derretido no banco do carona, com dificuldades, levei as pontas do meu dedo até o porta luvas, ativei a trava e dentro do mesmo tinha algumas pilulas, uma faca e uma pistola.
- Caralho! - Eu disse, focando a pistola com meus olhos - Uma arma, cara! UMA ARMA!
- Cala a boca, Luke! Não é isso o importante. Toma um desses comprimidos. - Disse Mike, apontando - Vai te ajudar a focar.
Assustado, levei minhas mãos trêmulas até as pilulas e tirei uma de dentro da cartela, minha falta de atenção e nervosismo fez com que a mesma voasse pra baixo do banco - Como um herói em uma missão cacei a pilula pelo chão do carro, arranhei minha mão em todas as partes de ferro possíveis até finalmente alcançar a merda da pilula. Pegando-a em um ultimo movimento fluído, limpei a poeira da mesma e a botei na língua, pausei por um instante e me virei pra Mike.
-- Tem água ai, cara?
-- Você quer Whisky também, madame? Mastiga essa porra!
-- Ok, Calma, cara. - Assenti, assustado com tamanha agressividade vinda de Mike.
Botei o comprimido na boca e pus-mê a mastiga-lo. Meus olhos fechavam e lacrimejavam com o gosto amargo e nojento do que quer que aquilo fosse. Mike tinha razão: Eu estava me sentindo mais calmo... A pressão na virilha criada pelo cruzamento violento das pernas já estava cedendo. A sensação de formigamento no corpo sumiu, finalmente estava conseguindo me concentrar... Um surto de calor atingiu minha cabeça e a animação tomou conta do meu corpo
-- É ISSO AI! - Gritei, como se tivesse injetado uma dose de heroína.
Mike riu da minha cara de forma sarcástica, ele sabia que eu não era acostumado com narcóticos e também sabia como eu nunca recusei nada que me fosse oferecido. Talvez eu devesse ser um pouco mais diligente com meus credos e "dogmas", mas já tava tarde pra isso.

O carro diminuía a velocidade - De longe eu via o farol alto de carros caros. Pareciam estar fazendo cerco em volta de uma das antigas fabricas da cidade, uma das não... Hudson Stell Corporation, a maldita fábrica em que eu trabalhava, agora uma peça da história tediosa da cidade de Middle Springs.
-- Chegamos, Luke.
Me levantei da posição derretida que estava no banco do passageiro e arrumei minha postura como um homem de negócios pronto pra dar OK em mais um projeto revolucionário. Era hora de fazer valer a pena.


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