O intocável

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E ele se sentia bem sendo o cara do tanque.

Sentado naquela cadeira ele se sentia invencível, completamente intocável. Comia uma lata de salsichas da qual sempre teve nojo, mas queria guardar o atum para depois. Olhou para a calculadora e o papel no chão. O combustível não ia durar muito, logo teria que sair novamente e encher os reservatórios.

Pelo pequeno visor deu uma breve checada no lado de fora. Abriu a escotilha superior e deu uma respirada no ar frio da madrugada, finalmente estava se sentindo melhor. Havia passado mal por três dias inteiros por causa de, acreditava e torcia para que fosse, comida estragada. Pegou um mapa da região que achara em um posto e anotou possíveis pontos onde poderia achar mantimentos e gasolina.

Ficava frustrado pelo som do motor do tanque abafar os “crecks” dos ossos se quebrando. Um carro à frente se opunha ao caminho que queria seguir. Acelerou e passou praticamente pulando com o tanque por cima do veículo, ficando ligeiramente apreensivo com a aterrissagem em apenas uma das lagartas. Quando o tanque voltou à sua posição normal, ficou aliviado ao ver que ele funcionava normalmente. Estacionou na frente do posto e esperou que os doentes se acumulassem em torno de sua fortaleza. Quando muitos estavam presentes para a “festa”, deu ré no tanque matando alguns e depois acelerou passando por cima da maioria com satisfação. Repetiu o processo até todos os mais próximos estarem mortos.

Desligou o motor e apurou os ouvidos, nada. Pegou seu rifle e abrindo a escotilha procurou por doentes mais distantes ou que não haviam morrido esmagados. Atirando com precisão matou mais oito. Sempre fora bom de mira, desde os tempos de treinamento no exército. Entrou fechando a escotilha e voltou a mexer no sistema de som que estava montando dentro do tanque. Com o tempo havia aprendido uma valiosa lição, “se pretender ficar mais tempo em um lugar, atire e espere os que ouviram virem”. E eles vieram. Em pouco menos que meia hora, lá estavam mais vinte doentes. Ligou o motor e o sorriso brotou em seu rosto, era hora da panqueca.

Depois de atirar nos dois últimos doentes que haviam sobrado, pegou seus equipamentos e desceu. Odiava essas horas. Sentia-se desprotegido e até paranóico quando do lado de fora daquelas paredes de metal. Segurava sua lança feita à mão olhando para todos os lados, com o tempo aprendera que em lugares abertos aquela era a melhor arma para combater doentes sem correr perigo de ser ferido.Aproximando-se do posto de gasolina, começou a checar as bombas, animando-secom o fato de que todas estavam com gasolina. Depois veria isso, primeiro ia procurar suprimentos. Entrou na loja de conveniência deixando a lança apoiada do lado de fora e sacando sua machete. Não achava que encontraria doentes ali dentro, mas era sempre melhor estar prevenido.

A loja estava com poucas mercadorias, provavelmente roubada quando a pandemia estourou. Checou as prateleiras e de útil encontrou apenas alguns itens de primeiros socorros, que já guardou na mochila, e água, que resolveu buscar mais tarde pela falta de necessidade, afinal, a torre do tanque estava com um grande reservatório de água quase que cheio. Checando atrás do balcão encontrou alguns ossos certamente humanos com marcas de dentes. Realmente era um final que não desejava.Aos fundos encontrou uma porta trancada. Riu baixo sozinho, era quase impossível achar a chave certa para as fechaduras hoje em dia, teria que forçar. Dirigiu-se até o lado de fora para verificar se algum doente estava próximo, e não encontrando, voltou para a porta atirando na fechadura. Três tiros foram necessários para a porta abrir ligeiramente com o impacto, e a conseqüência disso foi um enjôo automático causado pelo cheiro da morte.

Cambaleou até o balcão e lá se apoiou, respirando fundo para controlar o enjôo. Nos últimos meses havia vivido muita coisa, mas nunca sentira um cheiro tão forte de decomposição como aquele. Embaixo do balcão achou um pedaço de pano e desinfetante. Molhou o pano com o produto e o enrolou na cara fazendo questão de encostar-lo no nariz até o cheiro dar sensação de queimação.

Aproximou-se da porta com a machete em riste, mas logo percebeu que não existia perigo. O corpo estava terrivelmente decomposto. A janela havia sido pregada com ripas de madeira, deixando o cheiro muito bem acumulado.  A manchada roupa estava se decompondo junto, mostrando áreas do que um dia já fora a pele e agora era uma massa de carne podre. Vermes escapavam por purulentas cavidades. O cadáver do que já fora uma mulher (apenas agora conseguira identificar) estava deitado de lado no chão com uma das pernas dobradas e a de cima esticada, mostrando que quando morrera estava ajoelhada no chão. Em sua cabeça estava uma marca escorrida de um líquido seco cor argila que esperava ser sangue saindo de um buraco nítido do agora aparente crânio. Deu uma olhada rápida no cômodo e se afastou dali quando o cheiro voltou a ser sentido.

Apoiou-se em uma estante ainda olhando em direção ao cômodo agora com a porta encostada. Tentou respirar fundo, mas o cheiro estava impregnado, se não no ar, em seu psicológico.

 Ouviu um barulho característico de rodas derrapando ao frear.

Alertou-se. Guardou a machete na cintura e sacou o rifle das costas. Amaldiçoou-se por não tê-lo recarregado, pois este agora tinha apenas dez balas segundo seus cálculos. Agachado dirigiu-se até o balcão da loja com cuidado para não ser visto. Olhou por baixo de uma das ripas de bloqueio da janela e identificou um jipe, um jipe do exército! Um soldado estava em uma metralhadora montada no jipe e outros dois estavam observando o tanque, excitados.

“Porcaria” pensou. Se fossem soldados não iriam matá-lo, pois além de não fazerem isso (esperava), também era do exército, porém, se não fossem do exército e aquelas fardas um dia foram de soldados, ele estava em uma enrascada. Olhou em volta, não havia rota de fuga. O maldito dono do estabelecimento havia fechado qualquer possível saída. Apalpou os bolsos da farda até sentir um alívio extremo ao sentir o objeto arredondado. Tirou-o do bolso e arrancou o pino da trava. Tivera uma idéia.

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