Primeira lição, o aviãozinho azul
O pai gostava do pequeno a seu modo. Como dizem os antigos, os brutos também amam. As vezes chegava em casa com uma ou duas cachaças a mais na cabeça e, em estado de alegria exagerada, começava a brincar com o pequeno.Jogava-o para cima e o agarrava antes da queda. Isto fazia o pequeno estremecer com o frio na barriga que sentia cada vez que descia e era aparado pelo pai antes da queda.Mas ele no fundo gostava de voar nos braços dele. As vezes a brincadeira era outra. A de enrolar na coberta e não deixar sair. O pai segurava as pontas do cobertor de modo que o pequeno ficava como um peixe dentro da rede. O menino detestava esta brincadeira, mas sabia que o pai não fazia por mau, ele era bruto assim mesmo. As vezes, quando o pequeno chorava sufocado no meio das cobertas, o pai o soltava e dizia.
----Vixi, que marica chorona. Seja homi muleque!
Mas nem tudo eram só brincadeiras brutas. Quando o pai colocava o pequeno de cavalinho no ombro, o pequeno adorava. Ás vezes o pai levava o pequeno na cidade. A principio eles iam andando pela estradinha de terra, mas quando o pai via que o pequeno estava cansado e começava a diminuir o passo, colocava-o no ombro e lá iam os dois para a cidade. O pai sempre tentando ensinar alguma coisa ao pequeno.
----Muleque, dizia ele, você tem que aprender mais do que eu para não ser um burro de carga como eu sou. Sai da Bahia ainda muito moço. Queria estudar mas meu pai não deixava, dizia que não podia pagar meus estudos e que eu era mais útil capinando no roçado. Meu irmão, Porfírio, este sim estudou ás custas do velho, virou advogado.Mas eu tive que sair de lá fugido e vir para São Paulo para tentar estudar e ser gente. Mesmo assim só consigo escrever pouco... e assim o pai prosseguia numa conversa cumprida que dava até gosto. O pequeno ouvindo tudo calado. O pai falava sobre a época de plantio da cebola, das hortaliças, sobre as diversas luas. Lua para plantar, lua para podar, lua para colher. Segundo o pai, se alguém plantasse as coisas em lua errada, não colhia era nada. O pequeno ficava imaginando a lua como uma rainha que mandava na plantação.
---Agora pode crescer.
---Agora não pode.
Mas como é que a lua lá do céu podia mandar nas plantas aqui na terra? Será que a lua falava? Mas ele não perguntava nada disto ao pai com medo do pai dizer que ele era burro feito o Jaime, seu irmão mais velho. Vira e meche o pai falava mal do Jaime. Disto o pequeno não gostava. O pai dizia que o Jaime era vagabundo e que isto estava no sangue. O pequeno ficava mesmo era com raiva do pai quando falava mal do Jaime, seu herói. Mas não dizia um "a" não, que era para o pai não chama-lo de burro. Burro é que ele não era.
As vezes o pai parava de falar mau do Jaime e falava do presente que iam comprar para a mãe na feira lá em São João Novo. O pai podia ser bruto mas nas datas especiais sempre dava um presente para a mãe. Mesmo que o dinheiro tivesse muito curto e escasso, para um presentinho sempre se dava um jeito. No caminho para São João Novo, tinha uma venda onde o pai sempre parava e dava ao menino um ou dois copos de Tubaina. Era bom. Vinha cheia de bolinhas de ar dentro. Quando descia pela garganta, chegava queimar . Depois de alguns goles vinha a vontade de arrotar....e o menino dava um arroto com cheiro de tutti-frutti. Depois de prosear um pouco com o dono do bar, o pai punha novamente o menino no ombro e ia estrada afora para o centro de São João Novo. Enquanto se afastavam do bar, no alto falante sempre tocava uma ou outra musica do Roberto Carlos. Naquele dia estava tocando a musica que dizia: "Eu prefiro as curvas, da estrada de Santos, onde eu posso esquecer...."e o pequeno ia olhando os barrancões de terra vermelha a beira da estrada curva, e imaginando que o homem que cantava devia estar falando daquela estrada ali mesmo. Devia ser domingo, pois o pai só o levava a passear de domingo. Ao chegarem naquele dia na feira do centro que ficava perto da estação de trem, o menino ficou maravilhado com tanta coisa que podia ver de cima dos ombros do pai. Frutas, tinha todas. Algumas que ele nunca havia provado.
—Qué uma banana muleque? Dizia o pai parando numa barraca de frutas. É claro que o menino dizia que sim, adorava frutas. O cheiro das frutas era coisa mágica. Eram mesmo cheiro de domingo e de feira.Fruta em casa era coisa rara. Então era melhor aproveitar as bondades do pai enquanto ele não mudasse de idéia.Era bom sentir que o pai mesmo tendo seu jeito bruto cuidava dele dando-lhe tubaina e frutas. Os outros meninos não gozavam de tal regalia. O Silvio porque era coxo e não podia andar muito sem sentir dores na coluna; O Jaime porque o pai parecia lhe ter uma certa antipatia. O menino então, como era menor, mais portátil, mais quietinho e menos levado era sempre a companhia do pai na ida a São João Novo.
Além da barraca de frutas, havia também muitas barracas com tecidos de todas as cores, redes de dormir, bolsas, cacarecos de cozinha e uma que chamou mais a atenção do guri, a barraca de brinquedos de plástico. Como fascina os homens o plástico. Usam para tudo e querem cada vez mais obter coisas de plástico para levarem para casa mesmo que as usem por pouco tempo e depois as abandonem pelos céculos que elas duram.
Mas, o que deixava o garoto com muita vontade de ter aqueles brinquedos de plástico era mais a cor chamativa dos brinquedos do que o próprio brinquedo. Ainda no ombro do pai o menino aproveitou o máximo que pode os poucos segundos em que o pai passou pela banca de brinquedos e se deleitou com a visão privilegiada do alto de um ombro. Seus olhos tatearam cada brinquedo, cada plástico colorido, até focarem um lindo aviãozinho azul. Poxa, se ele pudesse ter aquele aviãozinho. Mas é claro que o pai nunca iria comprar um brinquedo para ele. Então para não levar um não, ele não pediu foi nada. Só acompanhou com a cabeça virada para trás, o quanto pode, a imagem do aviãozinho ali na banca. Quando chegasse em casa ele diria para a mãe o quanto quis ter o aviãozinho, mas o pai, nem quis comprar.Quem sabe a mãe dava um jeito e fazia o pão duro do pai comprar o objeto dos seus desejos.
A relação que tinha com o pai era de amor, respeito e medo. Sabia que o pai para lhe esquentar o trazeiro, caso fizesse algo fora dos conformes não custava nada. Então ficava o mais quieto possível. Pelo menos assim tinha certeza de que não iria apanhar do pai por falar coisa errada. Assim, passaram pela feira.O pai comprou um corte de pano para que a mãe fizesse um vestido para ela. Achou que este era um bom presente para o dia das mães. Depois de fazer as compras necessárias para a semana, colocou novamente o guri nas costas e voltou para o sitio onde chegou perto do meio dia. O menino ficava admirado com a força do pai. Como é que ele agüentava carrega-lo tanto em cima dos ombros. Só as vezes, o pai parava e colocava o menino no chão para que andasse um pouco . A fome ia aumentando a cada passo que davam.
---Deixa de ser marica rapaiz, vamo, anda..... falava o pai quando o menino diminuía o passo. Um passo do pai sempre equivalia a muitos do filho. Ele era para o menino um gigante e não conseguia acompanha-lo. Mas quando o pai perdia a paciência, punha o menino nas costas de novo e caminhava mais um tantão.O pai além de carregar o menino, também levava duas sacolas com as compras que fizera. E assim chegaram ao Sitio do Expedicionario. O menino conhecia de longe que tinham chegado porque avistava o pinheiro enorme que tinha na frente da casa amarela à beira da estrada. Os cachorros tantos que havia no sitio vinham logo ao encontro do pai, talvez para ver se ele lhes dava um pouco do jabá que comprara. Vinham que vinham balançando o rabinho. Os patos e gansos ficavam no quintal revirando a laminha da água que vinha da pia para ver se achavam um arrozinho para comerem. Assim como os patos, distraídos com os afazeres de rotina, pareciam estar todos da casa, até que o pai dava um grito
----Ôooooo! Daí logo o Jaime e o Silvio vinham ver se o pai trouxe balas ou pãozinho da venda. A mãe, arrastando os sapatos do aparelho ortopédico também vinha para fora de muletas, receber seus guerreiros com o carinho que só ela sabia oferecer.
---Então meus anjos, foram bem de passeio?
----Bem o que mãe? O pai não quis nem comprar o aviãozinho azul que tinha lá na feira pra mim....
----Mas o que você ta falando muleque? Que diabo de aviãozinho era este que eu nem vi?
----Lá na banca de brinquedo de plástico pai, tinha sim, um aviãozinho azul.
----Mas porque você não falou na hora moleque? Porque não pediu?
-----Eu sabia que o senhor não ia comprar mesmo.
----Podia até ter comprado, mas você não pediu, quem não chora não mama muleque....
----Deixa pra lá né filho, depois o papai compra o avioãozinho pra você, disse a mãe piscando para o pai para apaziguar o garoto que já sentia o nariz doer como se tivesse levado um soco e uma lagrima correr nos olhos. Por que é que não pedira? A esta hora estaria brincando com seu aviãozinho azul.
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O Heroi Negro
Non-FictionPelos idos de 1963 nasce um menino em uma família pobre e especial. Especial no sentido de que a mãe e a irmã tinham necessidades especiais. A mãe tinha tido poliomielite e andava com aparelho ortopédico. A irmã, que nasceu depois dele, viria a ser...