Descendo pelo trilho que saia da frente do rancho, ia dar numa lagoa grande que tinha uns pinheiros ao redor. Era lá que seu irmão, o Jaime, nadava de vez em quando, mesmo contra a vontade de seus pais. Mas o Jaime era esperto, tirava toda a roupa e tchuff na água que era para não chegar molhado em casa. Quando saia, ficava nu ao sol passando a mão para tirar a água da superfície da pele, ainda muito brilhante aos dez anos de idade. Ele via aquilo e ficava maravilhado com a liberdade de pássaro que aquela cena lhe transmitia. O Jaime era um pássaro. Apesar da sua bronquite asmática, ele sonhava em um dia entrar naquela lagoa também e nadar, nadar, até cansar como o Jaime fazia. Há como era livre o Jaime. Não tinha bronca do pai que ele não enfrentasse batendo o pé na sua opinião. Mesmo que isto depois lhe custasse uma boa surra e um banho de salmora para curar as feridas. O pai não era de brincadeira, ele batia de cinta, chinelo e chicote. Mas o Jaime era esperto. Se livrava as vezes da surra fugindo para o mato ou para a casa do vizinho mais próximo.Esperava o pai acalmar e depois voltava com a maior cara de pau.
---O Jaime é um bicho do mato, dizia o pai.
---Um pobre menino assustado, isso sim, dizia a mãe complascente.
---É por isto que este menino não se apruma, você não bate nem educa ele. Um dia vai pisar na sua cabeça.
--Você é muito bruto com ele, dizia a mãe. O Jaime é um moleque como todos os outros. Só tem um defeito, e deste você não o desculpa...ele....
---Ele é um vagabundo, um moleque desobediente e levado, isto é o que ele é. Se eu não o controlar na cinta, ele ainda acaba por virar um bandido.
Nos seus quatro anos de idade, ele ainda não atinava bem o que aquelas palavras significavam e o porque seu pai não tratava o Jaime como aos outros. Talvez o Jaime fosse levado mesmo e malcriado. Mas ele não levava isto em conta. As vezes , quando o Jaime
Fugia, ficava dias desaparecido. Mas ele, no fundo sabia que seu herói estava bem. Jaime não tinha medo de escuro nem nada. Quantas vezes o pai mandava ele catar lenha para o fogão quando a noite estava para cair no Buracão e ele ia. Cantava enquanto caminhava. Cantava que mais cantava e ia andando, catando gravetos e pedaços de pau para por no fogão a lenha.
" Com Cristo no barco
tudo vai muito bem,
Vai muito bem,
Vai muito bem,
Com Cristo no barco
tudo vai muito bem,
e passa o temporal...."
---Cê num tem medo Jaime, de ir lá fora no escuro? Ele perguntava...
---Tenho não, sou forte, o escuro não da medo não.
Forte o Jaime era mesmo. Ele tomava leite direto na teta da égua Potira. Tinha uns mocotós que só vendo. Era moreno escuro, quase negro o Jaime. O pai por isto se aproveitava da força dele para coloca-lo para cuidar da horta e rega-la todos os dias. Às vezes o coração livre do Jaime se manifestava e ele não regava a horta coisa nenhuma. Daí o pai brigava e batia nele e a cinta cantava no coro do menino.
Mas nem tudo eram espinhos. Ás vezes a mãe mandava o Jaime na venda lá em São João Novo comprar açúcar ou qualquer outra coisa que faltasse em casa.
---Mãe, posso ir com ele? Ele pedia.
---Claro que pode meu filho. Cuida bem dele heim Jaime. Se tiver muito sol, para lá no seu Zé Paulo para tomar água.
E lá iam os dois pela estradinha que saia de frente do sítio. Andavam, andavam e andavam . Passava boi por eles, dentro das cercas de arame é claro.Passava também boiada... Mas o Jaime, nem ai com boi brabo. Entrava dentro do cercado para roubar carambola. Achava a maior graça em vê-lo fazer caretas quando as carambolas estavam azedas. As vezes eles passavam por pastos queimados e o menor dizia:
-----Jaime, porque é que eles colocam fogo no mato?
-----É para matar as cobras, respondia. Quando bota fogo no mato as cobras assoviam e saem no pau. Se você estiver na frente elas te atropelam.
-----A gente vai parar no seu Zé Paulo?
----Claro que vai, ô desingonçado, a tia Marina faz um suco de carambolas que é uma dilicia, ce acha que eu ia perder?
----Jaime, porque a estrada tem tantas curvas?
----Diabo de moleque perguntão sô. Praque ocê qué sabê?
----É porque se me solta aqui eu não sei volta pra casa não.
---Qui voltá é esse moleque, a gente ainda nem num foi. E ademais inté cavalo volta pra casa sozinho e ocê nem cavalo num é....ta parecendo mais é um burro.....e ria a valer com o pequeno.
Quando chegava na caso do seu Zé Paulo, como sempre. A tia Marina os recebia super bem.
---Como é que vão meus amores. E dava um beijo em cada um. Oi, parece que adivinhei. Sabia que ia ter dois visitantes importantes aqui. Então preparei um bolo de fubá bem gostoso e um suco de carambolo bem fresquinho.
Ele ficava impressionado como a tia Marina sempre adivinhava que eles iam passar por ali. Tomava o suco morto de sede e comia o bolo com fome de cão. Em casa nunca tinha bolo. Será que a tia sabia disto?
A tia Marina, que devia já ter a idade dos "enta", vivia ali com o seu Zé Paulo. Mulher muito boa, não tivera filhos por algum problema físico. Adorava crianças. Ainda mais se fossem os filhos da comadre Ném . Ai é que tratava bem mesmo. Ás vezes, quando eles estavam comendo o bolo aparecia o tio Zé Paulo. Homem alto, magro, pele muito vermelha de tomar sol em pele branca e que trazia na cabeça sempre um chapéu de Santos Dumont. Para o pequeno, o tio Zé Paulo dormia e tomava banho de chapéu, não era possível ! Ele nunca vira o tio sem chapéu. Será que ele era caréca? Sabe-se lá.
----Como vão meus dois marrecos?
----Nóis vai bem Tio, graças a Deus.
----E a mamãe? Está bem?
E por ai ia o papo sempre muito cumprido , mas amigável to tio Zé Paulo.
Passado esta fase do passeio, tinham que seguir até a cidade. No caminho, o bolo de fubá ia descendo, descendo barriga abaixo até chegar lá no dedão do pé. Mas, daí é que vinha o pior, a volta, e o melhor....o rango na casa do tio Zé Paulo, onde sempre tinha carne e batatas. A cidade era um mosquito só. Daquelas que você passa e diz oi, tchau. Tinha a estação de trem de São João Novo, que era por onde a Vó e o Vô chegavam de vez em quando para visitar a família. Ás vezes vinha o Tio Gesse, a Tia Sônia, o Tio Heitor e a tia Ivani, o Tio Wilson e a tia Maria também visitar a todos lá no rancho do Pinheirão. A estação de trem para o pequeno como a morte é para alguns. Sabia que ela existia e que levava gente para algum lugar, mas sequer imaginava para onde. Via seus tios chegarem em São João Novo mas de onde será que eles vinham? Onde iriam acabar aqueles trilhos. Um dia o Jaime disse que uma rua termina em outra rua que continua e vai de rua em rua continuando um caminho sem fim. Mas ele não entendia bem isto. Todo caminho tinha que ter um fim. Ficava ali na porta da venda esperando o Jaime enquanto pensava na grandeza dos caminhos. Um dia usaria aqueles trilhos só para ver o que tinha do lado de lá. Daí, o Jaime comprava o açúcar, o jabá e os ovos. Seu João dava um "suco de groselha" para os dois, e eles se lançavam de volta pro Sitio do Expedicionario. O sitio tinha este nome porque tinha um pinheiro bem grande na frente que tinha um cheiro tão bom, destes cheiros que fazem a gente lembrar para sempre do lugar onde o cheiro exala. Chegavam de volta no sitio já entardecendo. O Jaime ainda tinha que pegar a lenha pra mãe pois ela precisava para fazer a janta. Como o Jaime, nestas ocasiões fazia corpo mole e não regava a horta dizendo que não dera tempo porque foi na venda, o pai ficava uma arara. Mas a mãe, com jeitinho, explicava que precisou de algumas coisas da venda e que mandou o Jaime buscar. Uma vez, numa dessas em que o espírito de passaro livre de Jaime aclarou, ele fugiu e passou dois dias sem aparecer no sitio, mas antes de dizer como ele passou as noites que ficou no mato, vamos ver que foi bem quando a Vó, o Vô e o resto dos parentes estavam de visita em casa. Foi o dia também, em que o pequeno pediu a prima Márcia em namoro. Para o ele aquele dia foi um fiasco. Seu herói sumira logo de manhã. Na noite passada ele tinha afrontado o pai e tinha apanhado bastante.O irmãozinho escutou o banzé. A mãe, coitada, apesar dos gritos nada pudera fazer para salvar o pequeno Jaime das cintadas. Quando pela manhã procuraram o Jaime, cadê? Nada de Jaime. Ele tinha sumido. Todos ficaram apreensivos pelo fato, mas o pai, que era um baiano muito querido dos familiares, dizia:
----Que nada, ele logo aparece com a sua cara de pau de sempre. Não regou a horta nem sarilhou água pra encher o latão. Eu não pudia deixar barato, tinha que acertar o pé dele.
Todos no fundo reprovavam o que o Baiano(era assim que chamavam o pai) fazia, mas eles apenas diziam algumas palavras que não faziam efeito algum no pensar do pai. O pequeno não sabia porque, mas Jaime gozava de uma simpatia imensa de todos. Devia ser porque o Jaime era grande, forte e bonito, um quase deus negro que só não o era porque era moreno escuro e não negro. O fato é que Jaime sumira bem no dia em que a Regina prima feia, e a Márcia, prima bonita, foram visitar o pequeno, levando a tira colo seus respectivos pais é claro. O pequeno amava aquela prima, e todos o incentivavam a pedi-la em namoro. Cá para nós, eles queriam era dar umas boas risadas quando a menina contasse que o primo do olho verde havia pedido ela em namoro. O menino fez umas graças para as primas no quintal do rancho. Mostrou a cabrita branquinha pra elas e até pegou a cabrita pela corda e puchou dizendo:
---Ceis qué vê como eu so forte? Sou que nem o Jaime, seguro nesta corda que não solto mais esta cabrita. E foi desamarrando a branquinha do pau onde estava ancorada. Dali um pouco a branquinha deu pra correr e puxar o pequeno. Ele que não queria largar a corda de jeito nenhum, tinha enrolado a corda na mão e nem que quisesse, conseguia largar. A branquinha danou a puxar o garoto pelo quintal, arrastando-o . ele de tanto nervoso que passou fez cocô nas calças e a Márcia correu para dentro para chamar um adulto qualquer para ajudar o menino a se soltar da corda que a branquinha continuava puxar para lá e para cá. Ao fim de tudo, vieram todos os tios e ajudaram o menino que já estava todo ralado de tanto arrastar no chão. A Márcia, ao ver que o menino fizera as necessidades na calça, gritou em alto e bom tom:
--Eu nunca vou ser namorada de menino que faz cocô nas calças.
E entrou no rancho dando risada. O menino, não agüentando a pilheria, saiu correndo chorando a vergonha que passou e só voltou muito depois, obrigado pela fome que sentiu perto da hora do almoço.
Mas ainda não tratamos do sumisso do Jaime. Dois dias se passaram e agora, com os preparativos da mudança, o pai já estava preocupado. Se o Jaime não aparecesse até o dia da mudança, que seria no domingo, como é que é a família poderia mudar. Os tios que vieram para ajudar na mudança iriam embora no domingo. Provavelmente teriam que ficar no sitio do Pinheiro até que o Jaime aparecesse. Na manhã da mudança, o Jaime apareceu para o pequeno apenas, logo cedinho. Escondido entre as moitas que havia na beira da cerca , o Jaime falou quando viu o pequeno passar:
---Ô zóio de estrela apagada, vem aqui.....
---Jai.....
----Cala a boca, moleque, não fala meu nome não que ninguém pode saber que eu estou aqui.
---a gente vai muda Jaime, ce não pode sumir assim não. Pêra que eu vou buscar um pãozinho pra você, deve ta com fome....
---Eu não posso voltar, se não o pai me bate. Bate sim, que ele é bronco que é só.
O pequeno buscou um pãozinho duro que tinha sobrado porque ninguém quis e trouxe escondido para o Jaime. Este, comeu o pão com fome de cão que nem sentiu o gosto. –Jaime, você não pode ser assim tão desobediente, hoje eu to te trazendo pão, mas como é que você vai comer almoço, janta.
Mal acabara o pequeno de dar seus conselhos ao Jaime, a mãe botou a cabeça para fora da janela e falou em tom baixo. --- Hei, vem aqui Jaime. Vem comer menino, que teu pai ta dormindo. Ele não vai te bater não.
O Jaime, meio ressabiado, entrou no rancho de paredes enfumaçadas e deu um abraço na mãe. Ela, chorando disse.
--- Jaime, meu filho, porque você faz isto comigo, some deste jeito e eu nem posso sair para te procurar. Onde você estava? Onde você dormiu menino, nossa você ta todo molhado....
---eu dormi dentro da canoa mãe. Eu cobria a canoa com uma folhas de coqueiro e dormia dentro. Durante o dia eu saia caçando umas frutas no mato para comer. Quando escurecia, eu vinha tomar leite da égua. Sabia que ninguém sai de casa a noite com medo de cobra. Acontece que justo hoje, eu levei um susto ao acordar e dei uma virada brusca e a canoa virou comigo dentro. Ainda bem que eu sempre amarrava ela no raso, então só tomei foi um banho.
O pai, no sábado, tinha levado uma chamada do sogro.
----Zaias, (o nome do pai era Isaias), voce não devia tratar o menino aos pontapés. É claro que ele fica com vergonha quando você briga com ele e os outros da família escutam. É por isto que fugiu. Vê se quando ele voltar não vai bater nele. O que fez fugindo, são coisas de criança, logo vai passar desta fase e não vai aprontar mais destas.
--Tá bom seu Nestor, disse o pai ao sogro. Eu respeito muito o senhor. É que este moleque é mesmo um traquinas, tira a gente fora do sério.
E assim, quando o pai viu o Jaime, passou batido por ele. O Jaime se encolheu todo mas o pai disse
. –Precisa fugir não moleque. Hoje nos vamos mudar para São Paulo e quando chegar lá espero que não faça mais das suas.
Jaime baixou a cabeça. A mãe sorriu para o menino fugido com um sorriso terno que curava todos os ralos e as dores nas costas que causaram as noites na canoa.
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O Heroi Negro
Non-FictionPelos idos de 1963 nasce um menino em uma família pobre e especial. Especial no sentido de que a mãe e a irmã tinham necessidades especiais. A mãe tinha tido poliomielite e andava com aparelho ortopédico. A irmã, que nasceu depois dele, viria a ser...