Ensaio sobre ela

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Considerar é uma questão tão pessoal quanto fazer escolhas.

Naquelas últimas 24 horas minha conta bancária de pessoas conhecidas aumentara. Tão rotineiro quanto acordar e sentir vontade de ficar na cama o dia inteiro, conhecer pessoas e estabelecer uma conexão quase instantânea com elas era normal pra mim, um jovem garoto com um quê de Homem, metido a Macho-Alfa; conquistador, carismático e sonhador. Acima de tudo, sonhador.

Interrompo aqui esta narrativa para constatar algo satisfatório a mim: há muito tempo não escrevia. Escrever, para mim, é uma das formas mais dignas de expor-se ao subconsciente universal regido à ranhuras e banhado por certezas vazias, que as pessoas costumam chamar de sociedade. Há tempos fazia coisas que queria pela sensação de autossuficiência que isso proporciona. Mal sabia eu que nem sempre o que parece-te libertador, liberta-te.

Voltando àquele local de descanso, uma normalidade me surge mas logo transforma-se em dúvida. Ou seria aflição? Quem sabe um ânimo por ser aquilo novidade? Mas... não era normal? De onde veio essa sensação de algo novo, diferente, então?

O reboliço que as borboletas causaram no estômago logo dissipou-se, transpondo-se à mente de maneira dissolvida, sublimando-se mais tardiamente. Pareceu-me amistosa a jovem com quem já cruzara outrora, que cheia de incertezas viera me pedir auxílio particular. Como bom docente que tento ser, não pude recusar ajuda. O comum de uma conversa para se combinar um assunto profissional é estabelecer condições, preços e discutir a melhor forma de agradar quem procura e quem oferece, até que o acordo esteja fechado e os trabalhos comecem; porém, com aquela senhorita, houvera uma exceção à regra.

Já tiveram a oportunidade de sentir-se importante para alguém a tal ponto que nem mesmo um triste-fim-de-série estragaria seu dia? Pois é, eu estava entrando numa good trip, e não chegara a quinze minutos completos desde a primeira mensagem.

Em outros momentos de minha vida pude contemplar amores, esses que me levaram a constatar a singularidade de cada "eu te amo" em sua órbita de consequências. Pudera eu saber, agora, que relacionamentos devem ser vistos como crianças em sua fase de perguntas: uma resposta incompleta ou amarga, e sua cabeça pesa pelo erro o resto do dia.

Ora, que fez meus pensamentos virarem-se para aquela menina tão abruptamente? Sua fragilidade tornara-se minha compaixão por aquele caso, e suas palavras não saiam de minhas memórias.

Uma proximidade clara foi se abrindo como o desabrochar de uma rosa-do-deserto em condições apropriadas. Eu a entendia assim como a mesma fazia questão de se esforçar pra compreender disciplina que estava por transmitir-se. Repare, disse "compreender". Se algo estava sendo realmente entendido por ela, esse algo era que - sem dúvida nenhuma - nasceria uma forte ligação entre nós.

As conversas entre mim e Tae eram deveras comuns, tendo que jovens conversam como jovens, velhos conversam como velhos, e crianças, como crianças. A peculiaridade a se notar aí seria a de que a completude estabelecida entre nossas falas poderia ser equiparada à diálogos de velhos conhecidos. Nós realmente estávamos indo muito bem.

Nunca gostei de ir à consultas com médicos; se os exames precisassem ser de rotina, eu mudaria o conceito de "rotina" para algo como "quase nunca".

Estava eu lá, prostrado num enorme engarrafamento de problemas imaginários que poderíamos resumir em apenas um: não gosto de esperar, principalmente se for esperar pra ser chamado por um médico. Que demora! Por que não podíamos acelerar aquilo? Eram só exames comuns de um jovem comum com problemas comuns.

Enfim, após uma tediosa manhã no hospital com um médico claramente frustrado com a vida, pude sair para dar continuidade a meu plano de aulas. Tae estava em uma das mesas do refeitório da escola, provavelmente esperando o sono passar, calma, serena. O contato com uma aula empolgante poderia animá-la. No breve intervalo entre a chegada dos alunos e a sirene que anunciava a subida dos mesmos para suas salas tive a chance de iniciar nosso primeiro contato visual e físico, mas antes que pudesse chegar a ela para tentar tirar aquela indisposição com um sorridente "bom dia!", ela trouxe sua serenidade a mim, e pude sentir o confortante calor que emanava de sua presença, acompanhado de um olhar doce e apaziguador. Ponto pra você, guria.

Confesso que me espantei ao saber do esforço que fizera para estar alí, mas envolver-se sem culpa nenhuma com alguém e deixar-se levar por uma simples conversa com olhares sinceros traz uma tranquilidade tão grande que deveria estar como regra no Manual Para a Paz Mundial da ONU.

Eu realmente não queria que aquela sirene soasse, muito menos que o ônibus que levava Tae de volta a sua casa chegasse, mas se pudéssemos controlar o tempo de cada um, nossa vida ficaria sem graça, não haveria aquele gostinho de "quero mais". Era isso, queria mais, mas nosso episódio diário chegava ao fim.

Parece exagero, mas beijá-la no rosto e ouvir aquele "tchau, Pedro" feriu-me. Contudo, estava tudo bem. Eu receberia as piores noticias de seus lindos lábios.

Capítulo I: Ensaio Sobre ElaOnde histórias criam vida. Descubra agora