Cigarros, Faróis e Garoa

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O álibi mais usado num tribunal de júri para inocentar um réu primário acusado de homicídio não-doloso é o de evocar indiretamente aos jurados o sentimento de compaixão. Colocar-se no estado psíquico do acusado no momento do crime condiciona a mente a tornar-se mais receptiva a atos abruptos ao subconsciente. Além deste, outra sutíl maneira de fragilizar a promotoria é desconsiderando envolvidos aparentes, substituindo-os por terceiros até então passivos ao caso, até que seu deck de cartas-acusados esteja parte alterado, a ponto de inverter a historia e inocentar vosso cliente. Por meio de terceiros, seu caso estará ganho.

As manhãs de Dezembro nem sempre foram chuvosas, como dizia meu avô. Aliás, o gentil senhor de cabelos cor-de-neve disse-me certa vez que nem doze era seu número. O senhor estava certo, vô: foram dez quem hoje são doze; acelera o mundo de poder quem poder tiver, quem fosse.

Naquele momento, o único poder cabível a mim era o de optar por faltar com Valentina ou encarar um forte trânsito sob chuva, como prometido. Bom, a companhia daquela mulher e seus aromas de café poderiam me fazer bem.

Minha amizade com Valentina já durava dois anos, caminhara por cascalhos em fervura e descansara seus pés descalços em grama macia. Sempre soube que poderia depositar minhas cargas emocionais em seus ombros esbeltos, assim como ela poderia choramingar para mim amores inacabados: remediávamos nossas mágoas entre cervejas geladas ao som de Nina Simone e B. B. King e longas conversas sobre a essência da vida, deixando sempre aquele gostinho de "outro dia terminamos essa conversa". Como de esperado, tinhamos várias conversas por terminar.

Naquele coffee house em que estávamos, o som das televisões ligadas mostrando a desgraça diária que chamamos vulgarmente de notícias abafava nossa conversa, porém, não ao ponto de abafar a cara de repúdio dela. - Porra, Pedro! De novo? - disse ela, prevendo o fim - Pensei que depois da última tivesse aprendido. Já até sei, se passar de uma semana, você quem termina. Se durar menos que isso, saberei que foi chutado.

Esperava essa reação como um cão espera sua vasilha de ração se encher às 7:00AM. O diferencial notável - e que arrisquei-me em discorrer a ela - foi a veracidade dos fatos. Não teria marcado aquele café-da-manhã à toa. Senti-me sempre confortável ao falar de mulheres para Valentina, mas parecia-me que desta vez as palavras teriam se acumulado em minha garganta. Tentei pigarrear, em vão. A busca pelas melhores palavras foi incessante, o grito estava pronto pra saltar, porém, minha fala foi inusitada até para mim:

- Tina, você é capaz de distinguir paixão de amor?

- Claro que sei, Pe... - interrompi-a antes que pudesse emanar qualquer asneira daqueles grossos lábios.

- Mas não digo os seus amores. Quando digo amor, me refiro ao seu real exemplo: justo, paciente, irremediável amor. É claro, ainda estamos no albor dessa historia, mas não é preciso de muito para enxergar que Tae não é só mais uma.

- E o que te faz pensar que comigo teria sido só paixão?

Meu envolvimento com Valentina tivera um início deveras perturbado. Não me convém recordá-lo; lembrança boa é aquela que lembra-te o que fazer, não o que foi feito. Guarde este conselho: não procure em mulheres o amor de sua vida. Mulheres surgem aos montes se quiser, mas a que realmente irá marcar-te virá por livre e espontânea vontade. Do acaso.

Fiz sinal para o garçom que nos estava servindo trazer a conta, meu tempo alí não poderia se estender mais. Amizades duradouras são feitas a partir de momentos não-duráveis.

Aquele dia com características de clima britânico me deixara indisposto para usufruir de minha folga, me trouxera apenas uma certeza: quanto mais demorasse pra pegar um táxi, mais distante de minha cama ficaria.

Os ponteiros de meu relógio marcavam 09:57AM, meu último contato com Tae fora às 02:41AM daquele mesmo dia. Nuca fui sujeito apegado, mas confesso que senti que talvez aquela indisposição não seria por conta do clima, seria pela falta do sorriso matinal acalentador dela.

20:36PM marcavam os ponteiros do relógio de parede da sala quando acordei. O que tinha ocorrido ali? Estava com as mesmas roupas que usara mais cedo para lanchar com Valentina, e estas, amassadas. Não me lembro de ter jogado-me ao sofá; pudera eu estar cansado, mas não a esse nível. Entre marcas de saliva e lágrimas que sempre nos fogem aos olhos, percebi algo diferente, estranho: por que havia sangue no tecido do sofá? Meu sono é pesado, mas um ferimento poderia tirar-me dele com toda certeza. Ao menos que... Era isso! Fiz força pra lembrar-me daquela crise de tosse que me atacara agudamente logo ao sair do carro, do gosto de sangue que permaneceu em minha boca.

Não falei com Tae o dia inteiro, quando o telefone tocou imaginei ser ela atrás de noticias minhas. Errei mais uma vez: do outro lado da linha estava o Dr. Ferlucci, médico que avaliou alguns exames meus feitos nos últimos dias.

O copo com água escorregou de minha mão, estilhaçando-se no chão. Já esperava resultados do tipo, encontrava-me com a saúde abatida no último mês, mas aquele diagnóstico foi o estopim. A metástase haveria ocorrido e as células cancerígenas de um tumor maligno espalharam-se por toda minha faringe. Meu estado agora era de paciente de câncer em estado terminal. Pouco tempo me restaria.

Aquele seria meu último cigarro. Ascendi-o e contemplei a chama se alastrar ao logo de seu corpo. O primeiro trago é sempre o melhor. Aquela tosse logo após, a pior. Sem reação, direcionei-me à varanda e ali admirei o fim do primeiro dia do resto da minha vida.

O segredo sempre foi saber como morrer.

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⏰ Última atualização: Dec 16, 2015 ⏰

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Capítulo I: Ensaio Sobre ElaOnde histórias criam vida. Descubra agora