ZeroUm

- II -

Ralph parou o carro no estacionamento do Hospital Central de Triccito e suspirou. Já tinha virado rotina passar naquele lugar sempre que encerrava o expediente e ainda que fizesse aquilo mais algumas centenas de vezes, a tarefa de encarar seu mentor, aquele sujeito sempre tão energético que não parecia conhecer descanso, que ironicamente vivia criticando ele por ser anos mais novo e ainda assim não conseguir acompanhar seu ritmo, deitado desacordado numa cama, parecendo mais magro e frágil a cada dia que passava, era uma tarefa difícil.

Havia se passado 4 meses desde o fatídico episódio na saída do estacionamento, Simmon passou por maus bocados desde aquela noite. A munição usada foi do tipo que se fragmentou causando severos danos ao seu abdômen. Sua resistência havia lhe custado um alto preço: foram três perfurações no intestino e uma no baço. Após lidar com uma grave infecção e de perder três metros e meio do intestino, os médicos conseguiram estabilizar o quadro.

O ferimento na perna também não correu bem. Os fragmentos da bala não chegaram a quebrar o fêmur esquerdo mas o fraturou, os músculos reto, sartório e adutor longo da coxa foram os mais afetados, também foram necessárias duas cirurgias mais tarde para remover coágulos que se formaram na região afetada. Aquele tipo de munição era fatal em quase todas as vezes.

Passada toda a tensão do mais grave dos ferimentos, a expectativa estava em esperar Simmon sair do coma. Quando Ralph olhou no calendário se deu conta que mais um mês se passava e seu mentor não havia saído do seu sono profundo.

Ralph havia conquistado a simpatia das enfermeiras do setor das UTI's por sua dedicação diária para com seu desacordado mentor. A familiaridade adquirido ao longo do tempo fez com que ele em certo dia percebesse algumas mudanças. Assim que pisou no andar e viu a recepção, viu a expressão que ela fez quando o viu sentiu um nó em sua garganta como se seu coração afundasse no peito. Ele temeu o pior e sentindo o aperto cada vez maior falou com Juliana, a simpática enfermeira que trazia uma expressão séria.

- O que aconteceu? - disse ele em um tom um pouco elevado.

- Calma, não é o que você deve estar pensando! Na verdade ele acordou hoje, só que assim que soube do tempo que passou e de que não sabíamos notícias da mulher nem da criança, ele meio que surtou! Queria sair para procurar ela e claramente podíamos ver que ele não tinha a menor condição de sequer sentar na cama. Aquilo ia acabar o  prejudicando. Ele estava colocando em risco a própria saúde, foi então que rapidamente o doutor chegou e não teve outra escolha senão aplicar alguns sedativos e deixar ele dormindo um pouco mais.

Ralph pôde então sentir o alívio o atingir como um soco e ele então desabou na poltrona mais próxima. "Então ele acordou!", pensou ele enquanto aquele temor se afastava dos seus pensamentos, porém sabia que no fundo essa situação era inevitável, no fim das contas Ralph partilhava da mesma angústia.

Felizmente seus pais biológicos estavam bem vivos no interior de Seba e embora Ralph nunca tivesse tido um mal relacionamento com eles, sempre sentira por Carol e Simmon um afeto que não cultivava nem mesmo pelos pais. Não sabia dizer desde quando, mas acabou adquirindo um sentimento de filhos para aquele casal, carregava consigo a figura materna vista Carol e paterna em Simmon, com todos os acontecimentos ele foi um dos mais afetados. O fato de não ter tido noticias de Carol desde então o fazia variar entre estágios de depressão, desamparo e frustração.

Com o tempo e com a ajuda de algumas pessoas no hospital, em especial Juliana, conseguiu lidar com tudo assumindo da melhor forma possível o lugar de Simmon no projeto TechUtri até que seu mentor pudesse assumir novamente. "Melhor do que ninguém, eu sei como ele se sente" pensou Ralph ao voltar para si.

Foi então que ele agradeceu a sutil enfermeira, levantou da poltrona e cheio de tensão caminhou em direção ao quarto. Assim que abriu a porta ele fixamente olhou para a figura imóvel na cama. A primeira impressão era de que nada havia mudado. Simmon continuava desacordado e tudo parecia idêntico. Enquanto ele observava o peito daquele paciente subir e descer lentamente a porta se abriu.