Em um livro anterior, The Act of Creation, tratei da arte e da descoberta científica, da glória do homem. O presente volume termina com um exame do dilema do homem e assim se completa um ciclo. A criatividade e a patologia da mente humana são verso e reverso de uma mesma medalha cunhada nas oficinas da evolução. A primeira é responsável pelo esplendor das nossas catedrais; a segunda, pelas gárgulas que as enfeitam e nos lembram que o mundo é cheio de monstros, demônios e súcubos. Estes refletem o laivo de insânia que percorre a história da nossa espécie, indicando que em alguma seção da sua linha ascendente até a preeminência houve algo de errado. Tem-se comparado a evolução com um labirinto de becos sem saída, e não, é nada estranha nem improvável a suposição de que a estrutura mental originária do homem, embora superior à de qualquer outra espécie viva, se ressinta de um erro intrínseco ou deficiência que o predispõe para a autodestruição.
Investigar as causas dessa deficiência é tarefa que começou com o Livro do Gênese e desde então se faz sem solução de continuidade. Cada idade oferece um diagnóstico, desde a doutrina da queda do homem até a hipótese do instinto de morte. Embora as respostas sejam inconcludentes, vale a pena apresentar as perguntas. Estas têm sido formuladas na terminologia específica de cada época e de cada cultura, e assim é inevitável que nos nossos dias sejam expressas na linguagem da ciência. Mas acontece que, embora pareça paradoxal, a ciência de tal maneira se atordoou, no curso do século passado, com as suas próprias conquistas, que se esqueceu de fazer as perguntas adequadas, ou recusou-se a fazê-las sob o pretexto de não terem sentido e, de qualquer modo, não interessarem ao cientista.
Essa generalização sem dúvida não se refere aos cientistas individualmente, mas à corrente ortodoxa e dominante nas ciências da vida na época contemporânea, da Genética evolutiva à Psicologia experimental. Não podemos ter a esperança de chegar a um diagnóstico sobre o dilema do homem, enquanto a idéia que tivermos dele fôr a de um autômato de reflexos condicionados, fruto de mutações ocasionais. O eminente biologista Sir Alister Hardy escreveu recentemente: "Cheguei à convicção, e espero persuadir-vos, de que é inexata a visão que se tem presentemente da evolução". Outro notável biologista, W. H. Thorpe, nos fala de "uma subcorrente de pensamento no espírito de dezenas, talvez centenas de biologistas que, nos últimos vinte e cinco anos, encaram com ceticismo a doutrina ortodoxa atual." Tendências igualmente heréticas se evidenciam nas demais ciências da vida, do estudo da Genética ao do sistema nervoso e, assim, ao da percepção, da linguagem e do pensamento. No entanto, esses diversos movimentos de não-conformismo, cada um com o eixo de interesse firmado no seu campo específico, ainda não oferecem contribuição suficiente para constituir uma Filosofia coerente.
Nas páginas que se seguem tentei juntar os pedaços soltos dos fios de idéias que se vão estendendo à margem da ortodoxia e tecer com êíes um padrão representativo do todo num arcabouço, unificado. Isso importa em acompanhar o leitor numa viagem cujo itinerário é longo e às vezes tortuo- so até chegar à nossa meta: o problema do dilema humano. A viagem se fará através da Primeira Parte do livro, que trata precipuamente da Psicologia, e da Segunda Parte, que concerne à evolução. Embora se tornem necessárias excursões em domínios aparentemente distantes da matéria central, espero que estes não se revelem desprovidos de interesse em si mesmos. Talvez alguns leitores, sòlidamente entrincheirados no campo humanístico da guerra fria entre as duas culturas, fiquem desalentados com uma aparente deserção para o campo inimigo. É embaraçoso ter de repetir que duas meias verdades não fazem uma verdade, e duas meias culturas não fazem uma cultura. A ciência não pode dar as respostas definitivas, mas pode formular as perguntas adequadas. E não creio que possamos fazer mesmo as perguntas mais simples, e menos ainda chegar a um diagnóstico, sem o auxílio das ciências da vida. Mas terá que ser uma autêntica ciência da vida e não o conhecido modelo de máquina caça-níqueis, baseado ingenuamente na concepção mecânica do mundo que vem do século XIX. Não estaremos em condições de formular as perguntas certas, enquanto não substituirmos esse ídolo obsoleto, por uma concepção nova e mais ampla do organismo vivo.
Foi confortador para mim tomar conhecimento de que outros autores, manifestando-se numa tentativa de refletir pontos fronteiriços nas duas culturas, se encontraram na mesma perplexidade. No primeiro parágrafo concernente ao seu livro On Aggression, Konrad Lorenz cita uma carta de um amigo a quem pedira que lesse e criticasse seu manuscrito. Esse amigo lhe escreve: "Este é o segundo capítulo que leio com o mais vivo interesse, mas com uma crescente sensação de incerteza. Por quê? Porque não consigo ver a sua correlação com o livro no seu conjunto. Você terá que tornar a coisa mais simples para mim." Se porventura o bondoso leitor destas páginas tiver a mesma reação, o que posso dizer é que fiz o máximo para tornar-lhe a coisa mais simples. Não creio que haja neste livro muitas passagens que lhe venham parecer técnicas demais, mas, quando fôr este o caso, poderá tranqüilamente saltá-las e retomar mais adiante o fio da meada.
Quando estava escrevendo este livro, fui sobremodo estimulado e assistido através de uma bolsa no Centre for Advanced Study in the Behavioural Sciences, em Stanford, Califórnia. Essa instituição, relativamente única na sua espécie e familiarmente conhecida pelo nome de "Think-Tank", reúne todos os anos cinqüenta bolsistas, escolhidos em vários campos de disciplinas universitárias e lhes dá, no seu campas situado no cimo da montanha, condições e facilidades para todo um ano de debates e pesquisas entre várias disciplinas, com isenção de quaisquer obrigações administrativas e de ensino. Essa oportunidade se tem revelado altamente proveitosa para o esclarecimento e verificação de idéias em laboratórios e seminários, com assistência de especialistas nos diversos campos, desde a Neurologia até a Lingüística. Só posso expressar a esperança de que esse estímulo e esse choque de idéias, generosamente proporcionados pelos especialistas ao longo dos nossos debates às vezes acalorados, não tenham sido em vão.
Alguns dos assuntos tratados neste livro o foram com maiores minudências em The Act of Creation e em meus livros anteriores. Muitas vezes, tive que fazer citações dessas obras. Quando no texto aparecer uma citação sem menção do nome do autor, é porque é feita desses meus livros.
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Expresso o meu agradecimento ao Professor Alister Hardy (Oxford), ao Prof. James Jenkins (Universidade de Minnesota), ao Prof. Alvin Liberman (Laboratórios Haskins, Nova York) e ao Dr. Paul MacLean (N. I. M. H., Bethesda) por terem lido e criticado parcialmente o manuscrito; e ao Prof. Ludwig V. Bertalanffy (Universidade de Alberta), ao Prof. Holger Hydèn (Universidade de Goeteborg), ao Prof. Karl Pribram (Universidade de Stanford), ao Prof. Paul Weiss (Instituto Rockefeller) e a L. L. Whyte (C.A.S., Universidade Wesleyana) por muitas discussões estimulantes sobre o assunto deste livro.
A. K.
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O Fantasma da Máquina
RandomEm seu livro que leva como título a frase de Ryle, "Fantasma na máquina" , Arthur Koestler faz particularmente uma crítica à teoria behaviorista de Burrhus Frederic Skinner. O foco principal do livro é o movimento da humanidade rumo à autodestruição...