A vida de 070794

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070794 queria ser uma criança normal, como aquelas que via na televisão portátil que achara no sótão de sua casa, queria poder ir a escola com outras crianças e se divertir das mais diversas formas, sem ter que obedecer ordens e mais ordens que sequer faziam sentido em sua mente.

Estranhava a forma como via aquelas pessoas se chamarem por nomes complexos, muitas tendo até mais de um único nome – achava estranho, afinal, ninguém ali possuía nome – para identificação. Mas, mesmo sem admitir, adoraria ser chamado por algum nome. Já estava tão acostumado com seu número de identificação que sequer imaginava que havia outro jeito de ser reconhecido, e quando descobriu, ficou tentado a ter seu próprio nome.

Entretanto, quando pediu para seus pais o chamarem por algo além de seu número de identificação, recebeu como resposta palavras afiadas e tapas doloridos por ter mexido onde não deveria. E ainda fora advertido, se voltasse a tocar naquele assunto novamente nunca mais poderia brincar com seu melhor – e único – amigo, também conhecido como seu vizinho.

Aquelas palavras doeram muito mais do que qualquer xingamento ou tapa, se tinha algo que 070794 gostava muito era o fato de poder se relacionar com a criança de cabelos loiros que tinha como companheiro tanto de brincadeira quanto dos diversos exames diários pelos quais tinha que passar.

E naquele mesmo dia fez questão de devolver a pequena televisão portátil ao sótão, de onde sabia que nunca deveria ter saído. Torceu para que nunca mais se sentisse tentado a pegar aquele aparelho novamente, tinha medo que tal deslize o impedisse de ver 201195, pois se tinha algo que detestava era ficar sozinho e trancafiado dentro da enorme casa na qual morava desde que nascera.

070794 também não gostava de sua família, nem eles pareciam gostar de si – os olhares mortos que lhe direcionavam deixavam mais do que claro que amor fraternal não existia entre eles – como diziam gostar. Entretanto, fingia ama-los, pois naquela pequena televisão portátil retratava famílias como a sua, e em todas as famílias que apareciam parecia que os filhos amavam os pais, e novamente, a criança se via tentada a parecer como aquelas pessoas tão diferentes de si, mas ao mesmo tempo tão iguais.

Ao menos, seus pais não o maltratavam como os pais de 201195 – o amigo podia não lhe contar nada, entretanto a criança via sempre marcas roxas e vergões na pele branca do amigo –, por isso não podia se queixar de sua família. Não achava problema a falta de amor que havia entre si, mas agradecia que a falta de amor não proporcionasse violência entre eles.

Nunca se importou em relatar aos médicos o que acontecia com seu amigo, achava que o garoto era capaz de denunciar a violência se fosse algo que realmente o incomodasse. Afinal, sempre que se machucava os médicos lhe perguntavam como e onde havia conseguido tal ferimento, duvidava que com o amigo fosse diferente – e sabia que para que o mesmo ainda estivesse com os pais era porque o mesmo mentia para os médicos que faziam seus exames diários.

Entretanto, quando ouviu o som de tiro vindo da casa ao lado, sentiu seu mundo desmoronar.

Era uma tarde quente de verão, havia acabado de voltar de mais uma bateria de exames – pela primeira vez pediram para que usasse seu poder em algo além de um pequeno copo descartável – e estava pronto para chamar 201195 para brincar no quintal unificado das duas casas quando ouviu o tiro.

Seus pais estavam em casa quando tudo acontecera, e a primeira coisa que fizeram fora discar para o único número disponível – o número do governo – enquanto a criança corria porta a fora indo em direção à casa do amigo, já esperando pelo pior.

Não precisou bater na porta, muito menos da chave reserva que ficava embaixo do tapete de "boas vindas", apenas estendeu a mão direita com força – mentalizando toda a sua raiva e medo naquela ação – o que fez a porta voar metros adentro da enorme casa.

070794 nunca perdera o controle de seus poderes, porém, ao ver o amigo caído no chão em meio a uma enorme poça de sangue fresco, não conseguiu se manter tranquilo ou muito menos sob controle de suas ações. Fora questão de segundos até que os pais de 201195 se encontrassem mortos no chão, ambos com a cabeça estourada.

Quando se apercebera do que havia feito, a criança de apenas sete anos caíra de joelhos no chão da sala, com os olhos cheios de lágrimas. Nunca havia usado seus poderes numa escala tão grande, e sequer havia imaginado que poderia machucar alguém – quem diria matar. E lá estavam os pais de seu melhor amigo, mortos, por sua causa. E para piorar tudo, seu amigo estava à beira da morte.

Aquela cena seria o ambiente de todos os seus futuros pesadelos, todo aquele sangue espalhado pelo chão e pelas paredes, o cheiro de pólvora e ainda mais o som descompassado de seu próprio coração. Tudo aquilo parecia ter saído de um dos diversos filmes de terror que havia visto pela televisão portátil de seus pais e não a casa de seu melhor amigo.

E como em um passe de mágica, 070794 entrou em estado de choque. Era como se seu cérebro tivesse se desligado de seu corpo, deixando a criança com os olhos bem abertos, mas sem realmente ver alguma coisa. Não apresentou reação alguma quando vários oficiais do governo entraram pela porta da frente, tendo na mira de suas armas potentes a criança, prontos para qualquer reação explosiva do mesmo.

A falta de reação do garoto apenas facilitou tanto no resgate de 201195 quanto para escoltarem o próprio 070794 para longe daquela casa e de toda aquela vida que conhecia. Nunca mais voltaria para aquela vizinhança tranquila, muito menos veria seus pais outra vez, aquele dia fora seu ultimo dia como uma criança livre.

Aquele fora o dia mais decisivo de toda a vida de 070794, fora o dia em que deixara de ser mais um número para as autoridades, fora o dia em que passara a ser visto como criança prodígio e futura arma de guerra. 

070794 / lashtonOnde histórias criam vida. Descubra agora