070794, a criança prodígio

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Demorara algumas horas para 070794 voltar ao seu normal, finalmente saindo do estado vegetativo que entrara minutos depois de matar os pais de seu amigo. Entretanto, mesmo voltando a ter total controle sobre seu corpo, os olhos vazios que adquirira durante o período de tempo que permanecera fora de ar continuaram consigo – como uma lembrança de tudo que havia feito.

Desde que voltara, 070794 não se sentia mais como uma criança normal. Nada parecia ser tão interessante quanto antes, até mesmo os seus poderes lhe pareciam entediantes – antes se divertia tanto fazendo objetos flutuarem, agora tal ação apenas lhe proporcionava sono – ou perigosos demais.

Sentia falta de 201195, mas ninguém tinha permissão de lhe contar o que havia acontecido com o garoto de cabelos loiros, o que fazia a criança pensar que o amigo não resistira aos ferimentos e acabara vindo a óbito – ao menos era isso que os médicos lhe disseram sobre os pais de seu amigo, que eles não resistiram aos ferimentos que havia causado.

Desde que acordara, não vira seus pais uma única vez.

Não sentia falta deles, mas ao menos os dois adultos lhe proporcionariam rostos conhecidos no meio de tantas pessoas desconhecidas, o que seria um tanto reconfortante para si. Em todos os seus sete anos, apenas tinha afeição por três pessoas – seus pais e 201195 – e nenhuma delas se encontrava presente nessa nova fase de sua vida.

Ficava trancafiado naquele pequeno quarto acinzentado grande parte do dia, saindo apenas para fazer alguns exames de rotina – e outros nem tanto. Tudo ficava dentro de um enorme complexo, e por conta disso não via a luz solar desde aquele dia. Corredores bem iluminados ligavam seu quarto até as mais diversas salas nas quais fazia desde exames de sangue até ressonâncias.

070794 não tinha mais uma vida, muito menos livre arbítrio, ele não passava de um misero rato de laboratório. Porém, ele não se importava com aquilo. Não tinha para onde fugir, e nem um motivo para fugir dali, quem lhe garantia que teria uma boa vida fora daquelas paredes? Quem lhe garantia que não o encontrariam depois? Ao menos ali tinha algum propósito, fora dali não tinha tanta certeza.

Ouvira de um dos médicos que o governo o tinha como criança prodígio por conseguir usufruir tão bem dos poderes que lhe foram dados através das diversas mudanças genéticas causadas durante sua gestação. Não concordava com aquela ideia, afinal, fora a falta de controle que gerara todos aqueles problemas.

Entretanto, 070794 não se arrependia do que havia feito de fato. Faria tudo de novo se tivesse a oportunidade, só mudaria o fato de não ter conseguido salvar seu amigo, mas tirando isso, faria tudo igual. Não sentia pena de ter explodido a cabeça dos pais de 201195, nunca gostara deles, então em sua mente não se tratava de uma grande perda no final das contas.

Porém, estaria mentindo se dissesse que aquela situação não ocupava um espaço especial de sua mente, afinal, aquela cena nunca seria apagada de sua memória. Matou os pais do amigo, sem nem mesmo se aperceber, e estranhava o fato de aquilo não produzir a quantidade de sentimentos negativos que esperava que produzisse.

Quando via os heróis das histórias que se passavam na televisão portátil de seus pais matarem alguém, eles nunca pareciam gostar de ter matado, sempre tinham pesadelos a respeito e até mesmo visões enquanto estavam acordados. Os que não sentiam nada quando matavam alguém eram os vilões.

Será que ele era o vilão de sua história?

Não seria chamado de criança prodígio pelo governo se fosse alguém do mal, mas se fosse do bem também não precisaria ficar trancafiado dentro de um quarto que mais parecia uma cela, sem qualquer contato com o mundo exterior.

070794 não queria ser visto como vilão, muito menos como uma criança má. Queria apenas ser uma criança normal, brincando com seus brinquedos no quintal de sua casa junto a 201195. Queria ser o cara bonzinho que sempre se dá bem nos filmes, aquele que sempre acaba feliz e ao lado de quem ama.

E sem nem mesmo perceber, começou a chorar.

Não queria aquela vida para si, não queria continuar preso dentro daquele quarto de paredes acinzentadas – que mesmo tendo tudo que tinha em seu antigo quarto, não chegava nem aos pés do conforto que sentia dentro de sua própria casa – e sem vidas, sendo observado pelas câmeras presas nas quinas das paredes.

Queria seus pais, sua vida de volta.

E o mais importante, e a única coisa que realmente nunca mais veria, queria sua televisão portátil de volta.

070794 / lashtonOnde histórias criam vida. Descubra agora