Capítulo 2- Sozinha?

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- Mãe, eu já disse que estou bem - Puxei a velha coberta branca e felpuda para cima de mim novamente - Você deveria ter se acostumado já.
- Me acostumar? - Ela perguntou incrédula e eu não conseguia ver a banalidade em minhas palavras, ela deve ter usado um GPS para achar - Kylie.
- Mãe - A encarei e revirei os olhos, minha mãe sempre me tratou como uma boneca de porcelana. Eu nunca ia brincar com as crianças na rua ou então nas excursões da escola, meu tempo sempre foi gasto da forma que ela e uma equipe médica achava melhor - São efeitos colaterais, vão acontecer as vezes.
- Eu não quero saber, vou marcar uma consulta para semana que vem e não se fala mais nisso - Com uma autoridade que poucas vezes ela tinha, saiu do quarto e bateu a porta me deixando sozinha com as paredes e a minha mobila.
Puxei a garrafinha ao lado da cama e tomei um bom gole de água, minha garganta estava seca e com um gosto péssimo de vômito. Fitei o teto branco, ele era tão sem graça e sem vida que me fazia querer ser depressiva, mas quando eu dizia para a minha mãe que eu queria pinta-lo ela fazia um discurso de longas horas que se resumia basicamente em: " É um quarto, não uma prisão. Precisa de claridade ".
Com os pés para fora da cama caminhei até o meu banheiro, passei a mão pelos cabelos e encarei meu reflexo cansado e abatido, tudo que eu precisava era de um banho. Tirei a roupa e joguei-as no cesto de roupas sujas, abri o registro e deixei o chuveiro no mais quente possível. Enquanto a água corria pelo meu corpo minha mente flutuou para a minha antiga escola, daqui algumas semanas começariam as aulas por todo o Estado. Um dos privilégios que adquiri na vida foi ter professores particulares, no começo eu achava a maior diversão por não ter que acordar cedo e encarar o ônibus escolar, mas agora que deveria ser meu último ano, a coisa que eu mais quero é me envolver socialmente.
Puxei a toalha e fui rápida em me trocar, não me lembro quando me tornei uma pessoa frienta, mas eu me tornei. Coloquei um chinelo, uma saia azul marinho com pregas e regata branca por dentro. Prendi meu cabelo num rabo de cavalo e desci para o café -mortal, da manhã.
- Bom dia, familia - Dei um beijo na bochecha da minha avó que estava de costas cortando alguns morangos. Minha avó deve ser a pessoa mais bondosa e caridosa que eu conheço, ela é bem aquelas velhinhas amáveis, sabe? Tem um cheiro que me trás conforto e usa sempre vestido, cabelo preso e gloss. Ela foi uma enfermeira durante a guerra e foi lá que conheceu meu avô, ele tinha uma posição alta no exército e depois que a viu, sempre arranjava uma desculpa para visitar sua pequena sala.
- Bom dia querida, acordou melhor? - Ela gentilmente perguntou, com um sotaque levemente britânico.
- Acho que sim - Coloquei a mão na testa me certificando que não havia sinal de que a febre tinha me visitado durante a noite.
- Que ótimo, sua mãe foi acompanhar seu avô na banca
- Coitado dele, ele sai para se livrar da comida dela e ela vai atrás - Rimos juntas - Pelo visto ele vai se juntar a nós no café da manhã - Coloquei mais um xícara na mesa de madeira. Estava repleta de frutas e o espaço onde ficavam os pães estava vazio.
- Seu pai foi buscar os gêmeos no aeroporto - Minha vó me certificou. Os gêmeos são os meus meio-irmãos Adam e Caleb, que vivem na Flórida com a avó já que a mãe deles faleceu durante o parto. Adam era o mais estudioso, terminou o colégio e ingressou numa ótima faculdade onde ele cursa para ser um neuro cirurgão pediátrico. Caleb é bem largado, repetiu o último ano duas vezes e quando concluiu fez um discurso dizendo tantos palavrões e xingando tantos professores que eu realmente não sei como ele não saiu algemado da sua própria formatura. Hoje ele faz alguns serviços limpando piscinas, e nem venha pensar que é apenas algo que ele encontoru em um anúncio de jornal e resolveu tentar, ok? Caleb ama o que faz e quer em breve ter o próprio negócio, meu pai tenta convence-lo a tentar administração para que ele tenha uma base.
- Ótimo, vou ser ignorada o resto da semana - Rolei os olhos e fui para o fogão fazer o café antes que minha mãe chegasse e tentasse nos matar com a sua água cafeínada. Meu pai e meus irmãos sempre se deram bem, eles torciam para o mesmo time, curtiam os mesmos esportes e bandas musicais e adicionando todas essas coisas com a saudade que tinham um do outro: eu nem existia para eles.
Ajudei minha vó com o restante das frutas, preparei um suco e terminei o café. Eu nunca acertava no chá, então essa parte era com a minha avó. Quando a mesa já estava posta, minha mãe e meu avô chegaram carregando sacolas de feira. Meu avô, como já mencionei, deu uma flor para a minha vó e explicou para ela o tipo e o significado. Meu pai também não demorou a chegar, entrou carregando as malas dos folgados dos meus irmãos que vieram correndo até mim.
- Kylie, cade você - Caleb colocou a mão na testa como um capitão ao mar procurando um lugar seguro para encostar seu navio - KYLIE - Gritou e todos da sala riram, coloquei as mãos na cintura e fiz bico, ele nunca perde a piada - AH! Ai está você - Me abraçou tirando meus pés do chão e rodopiando - Que saudades
- Caleb, cuidado - Adam segurou o braço dele para que ele não girasse mais. Minha visão ficou turva por alguns instantes e eu senti meu estômago revirar algumas vezes - Vem aqui minha irmã preferida - Ele me puxou para um abraço quente e apertado. Adam sempre teve mais juízo que os idosos de uma casa de repouso inteira e mais cuidado que os enfermeiros de tal - Como você não cresceu - Ele bagunçou meus cabelos e me soltou, fiquei entre as duas muralhas e a familia inteira sorria. Minha mãe sempre foi uma figura exemplar para eles, durante a infância ela passava noventa por cento do tempo com eles até a avó deles resolver que precisava de compania.
- Vem, vamos sentar - Minha mãe convidou-nos e fomos para a mesa. Meus pais nunca foram dos mais religiosos, mas nunca abriram mão de uma pequena oração em familia pela comida que estava na mesa.
- Como tem sido as coisas na Flórida? - Meu avô perguntou para os netos postiços
- Muitas gatinhas e muita diversão - Quem falou isso? Sim, o Caleb. Seria bom se , as vezes, ele fosse menos sincero.
- Bom, eu não sei o que é diversão já faz uns dois meses - Adam colocou algumas frutas no prato e um pouco de nutella na borda - Estou em um estágio e parece que os médicos são pagos para nos perturbar.
A conversa levava ritmos acelerantes e vez ou outra intelectuais, mas claro que Caleb interrompia e dizia alguma besteira. Os pensamentos sobre voltar a escola, que invadiram minha mente logo pela manhã, passaram novamente na minha cabeça. Eu precisaria analisar todas as condições e deveria pensar seguidas vezes antes de decidir falar alguma coisa, mas sou mais do tipo que quanto mais pensa mais merda faz, então resolvi simplismente desabafar.
- Estou me sentindo sozinha - Todos pararam de conversar e me olharam atenciosamnete confusos. Sem que ninguém se pronunciasse, tomei a deixa - Quero voltar para a estudar.
- Querida, seus professores vão começar a vir na semana que vem - Minha mãe se refereiu a Dona Eunice, uma senhora de 62 anos que me ensinava a parte de humanas e o Sr. Dowton que tinha 32 e ficava com as exatas.
- Não, mãe. Eu quero estudar em uma escola de verdade, com pessoas de verdade, carteiras e ármarios velhos, uma lousa e colegas irritantes.
- Você sabe o que vai acontecer lá - Meu pai suspirou pesadamente, como se uma bigorna caísse sobre suas costas - As pessoas vão te olhar diferente e te tratar diferente, vão comentar e alguns podem ser cruéis. Lá não tem o suporte necessário e nem uma estrutura que te ajude com o sobe e desce diário - Até parecia que ele já estava calculando um pedido desses, ele despencava uma lista de fatores sobre mim e eu queria apenas gritar que já chega.
- Sua saúde ficaria em risco, visto que sua imunidade seria atingido em cheio pela falta de higiene naquele ônibus - Adam ajudou meu pai no discurso. Qual é, todos contra mim?
- Você aguentou esses anos todos, por que isso agora? - Minha mãe me olhou com aquele olhar que as mães tem de " a culpa é minha, mesmo não sendo" e eu precisei desviar - São só mais alguns meses
- Eu acho uma boa - Caleb se pronunciou e eu sorri, todos o olharam incrédulos pois esperavam... Uma ajuda no plano "Manter a Kylie longe da escola" - É o último ano dela, quero dizer, vocês tem que ser justos com a garota e , me desculpe Kylie não é para magoar, vocês sabem que ela pode nem chegar a ir numa faculdade. Por que deixar ela de fora? Ter amigos e adquirir histórias, ela não pode viver esperando que o amanhã nunca chegue.
Eu acho que todos esperavam que eu me magoasse com o pequeno e justo discurso de Caleb, mas acho que daquela mesa ele era o que mais me entendia. Eu me sinto uma boneca numa prateleira velha e fechada, escondida das mudanças do clima e da poeira. Quero sair as vezes com gente que eu realmente goste, ir em alguma festa e dançar com todo mundo, tocar uma campainha e sair correndo, chegar atrasada na aula de um professor chato e quem sabe cabular uma? Quero experiências, não quero ser privada do mundo lá fora. Eu estou aqui e quero marcar essa minha passagem.
- É arriscado, Caleb - Meu avô disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
- Eu posso levantar da cama, escorregar, bater a cabeça e morrer, mas nem por isso eu fico lá deitada com medo de pisar no chão - Eu levantei da mesa incrivelmente chateada pela falta de compreensão - Será que voces podem me entender? A quanto tempo eu estou presa aqui? Eu fico sentada de frente a janela olhando o tempo passar e as coisas mudarem, mas eu não posso ir lá e contribuir.
Sai da mesa como um furacão, eu estava cansada mentalmente e fisicamente. O mundo já caiu sobre suas costas? Pois o meu cai a todo instante, a gravidade insiste em me puxar para baixo.
Eu odeio gritar com eles, eu odeio magoas-los, eu odeio a minha vida e a forma como as coisas acontecem. Uma noite estava tudo bem e na manhã seguinte eu já não podia nem dar uma cambalhota sem que alguém me repreendesse.
O dia passou rápido depois daquela discussão, eu estava tão focada no livro que quase nem ouvi as batidas suaves que ecoaram pelo meu quarto. Sussurrei um "pode entrar" não por vontade de ignorar as pessoas, mas é que "As vantagens de ser invisivel" já me consumia por dentro e por fora.
- Querida, podemos conversar? - Meus pais colocaram a cabeça para dentro do quarto, eu assenti esperando que viesse um sermão disfarçado de conselho, mas tudo que veio foi...- Pensamos melhor e você tem razão.
- O que? - O livro desabou de minhas mãos
- Você pode voltar a estudar - Minha mãe falou sorrindo e eu imediatamente pulei sobre eles, morrendo de felicidade e anciosa pelo que eles falariam a seguir - Mas você vai ter mais acompanhamentos médicos e nós iremos escolher a escola.
- Qualquer coisa desde que eu volte a estudar.
Com uma noite agitada daquelas, meu corpo não durou muito até pedir um descanso. Fechei os olhos e meu cérebro entrava em combustão só de lembrar que logo eu voltaria a ativa e me veria longe da compania da minha querida-não-querida solidão.
Pela manhã seguinte ja acordei agitada, não me lembro em que momento eu realmente cai no sono, mas sei que foi preciso muito esforço para que meu corpo se relaxasse e desligasse por um período. Procurei um vestido branco e sapatilhas, passei um pouco de batom rosa escuro e desci as escadas procurando pela minha mãe. Ela estava com o notebook em cima do balcão e segurava o telefone entre e orelha e os ombros. Pegando partes da conversa entendi que ela marcou algo para daqui vinte minutos e perguntou o que seria preciso levar.
- Vamos? - Ela puxou a bolsa para o ombro enquanto encerrava a chamada
- Pra onde? - Perguntei puxando uma maçã da fruteira
- Fazer sua matrícula - Ela falou sorrindo e pegando na minha mão, fomos até o carro e ela seguiu caminho durante algumas quadras. Era um caminho consideravelmente longo e movimentado até chegar no prédio da Yuri Webber High School, um colégio tradicional e público.
Haviam apenas funcionários por toda a extensão, eles usavam uniformes vermelhos e na camisa carregavam crachás com nome e função. O corredor cheio de armários da mesma cor dos uniformes dos funcionários eram intercalados com alguns brancos, alguns estavam personalizados com fotos ou adesivos de bandas. As paredes todas brancas davam impressão de um lugar civilizado e ordenado, no fim do corredor uma placa bem grande anunciava a secretária e lá estava um homem de terno e gravata carregando uma pasta. Minha mãe tratou de abrir um sorriso e cumprimenta-lo assim que perdemos distância.
- Você deve ser a senhorita Kylie - Ele puxou a minha mão para um aperto e abriu um sorriso largo e convincente - Eu sou o diretor Coplin.
- Muito prazer - Sorri retirando minha mão, educadamente, da sua.
- O prazer é ... - Seus olhos voaram para um canto perto dos armários - BIEBER, solte essa placa agora.
Quando me virei para ver quem era, um grupo de garotos saiu correndo em uma velocidade invejável para a saída, mas a tempo de eu notar as calças caídas. AQUELAS calças caídas da livraria.  

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