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Por mais que eu enviasse e-mails com o currículo ninguém me chamava para as entrevistas. 26 anos, morando com os pais, e o tudo o que eu tinha no momento era uma dor de cabeça e uma divida com o banco. Decidi que ia topar qualquer coisa, só pra não ficar sem emprego, sem um salario, porque meu visa não ia se pagar sozinho. Além do mais o banco não queria saber se eu tinha sido demitida. Nem se tinha sido abandonada. Tinha acordado cedo naquela manha, peguei o carro da minha mãe pra ir ate a banca de jornal mais próxima. Desde que eu tinha saído daqui a oito anos atrás as coisas pareciam não ter mudado muito. As casas continuam da mesma cor, a cidade tinha os mesmos pés de manga plantados na praça, tudo parecia exatamente igual. Se duvidasse ate o jornaleiro seria o mesmo. Enseada sempre foi uma cidade pequena, apesar de muito organizada. Uma cidade que você sabia exatamente onde encontrar a cada pessoa. Que todo mundo conhecia todo mundo. A cidade que tinha um Beto borracheiro, o Zé da lavanderia e a Dona Zilda da padaria. Uma cidade do litoral que encantava muitos turistas de dezembro a fevereiro todos os anos. Estacionei o carro e fui caminhado até a banca. No curto trajeto do estacionamento até o jornaleiro, uma casal que passava me olhou e começou a cochichar. Olhei-me em busca de algo sujo, rasgado. Será que meu rosto estava sujo? Passei a língua sobre os dentes pra ver se algo tinha ficado grudado ali. Enquanto pegava um exemplar de cada jornal disponível, vi que outra moça, baixinha e de cabelos encaracolados na altura do ombro, me olhava. Quando olhei pra ela, ela desviou o olhar. Ela parecia muito a Mirtes Mirtilo. Uma menina que estudava comigo na oitava serie. A gente a chamava assim por causa de uma calça azul que ela usava. Eu já estava uma semana na cidade e não tinha feito a menor questão de reencontrar meus antigos amigos. Nada do que aconteceu em Costa Grande podia chegar ali. Eles fariam perguntas e meu recomeço já estaria fadado ao fracasso antes de ter início. Além do mais, a galera que eu andava naquela época estava todos casados, eram pais de filhos saudáveis e funcionários estáveis de alguma empresa. E talvez eu não tenha sido a mais gentil das colegas quando me mudei. Talvez eu não tenha retornado as ligações e nem os e-mails. Eu estava sendo uma grandessíssima babaca, essa é a verdade. Eu estava achando que tinha tudo certo. Tudo já ajustado e que não fosse precisar mais dessa cidade. E pra ser sincera, achava que meus amigos do interior não se encaixavam na vida que eu tinha em Costa grande. Meus amigos não se encaixavam nas minhas viagens, nos meus jantares e na minha vida agitada. O pessoal daqui não entenderia as piadas, as tiradas sarcásticas e as histórias. A maioria ia se sentir deslocado em meio tanta gente. Não saberiam que roupa usar. No fundo, eu tinha vergonha. Tinha medo do que iriam falar de mim e acabei cortando os laços. Mal mantive contato com meus pais. Desde que sai daqui, voltei duas vezes à cidade. Nas ocasiões especiais como aniversário dos meus pais ou o meu, pagava pra eles irem ate Costa grande. Ou pra algum hotel. Longe dos olhares daqueles que me conheciam. Não é uma atitude que de pra se orgulhar, eu sei. Mas naquele momento parecia certo. Todas as atitudes que tomei naquela época pareciam corretas. Vendo em perspectiva, posso ter sido uma pouco idiota.
Já estava quase saindo da loja com as sacolas cheias de jornal, quando a moça que eu havia pegado me olhando anteriormente me abordou.
- Cléo?
Levei um susto e só consegui afirmar com a cabeça. Ela veio andando em minha direção e me estendeu a mão
- Mirtes. Lembra-se de mim?
Ela era afinal, a Mirtes Mirtilo. A fisionomia parecia à mesma, ela tinha crescido um pouco e tinha curvas mais avantajadas agora. Com um vestido florido acentuando a cintura dela, ela estava extremamente elegante nos saltos vermelhos que usava. Apressei-me e apertei a mão dela.
- Oi! Quanto tempo.
Ela abriu um sorriso ainda maior.
- Exatos oito anos! Você esta ótima!
Simpaticíssima. Eu não estava ótima coisa nenhuma. Minhas calças jeans agora estavam apertadas na cintura e eu usava sandálias de dedo. É bem provável que meu cabelo estava fora do lugar e ele não via uma boa escova há algum tempo. Retribui ao sorriso iluminado dela.
- Você também, de verdade.
É muito estranho quando encontramos alguém assim. Não sabemos qual o sentido dar na conversa e nem o que falar em seguida. Eu principalmente, não sabia o que falar. Nós nunca fomos próximas e nem ao menos conversávamos na escola.
- Você esta de carro? - Surpresa com a pergunta, assenti com a cabeça - Pode me dar uma carona? Sou vizinha da sua mãe.
- É claro.
Saímos da banca de jornal em silencio, o salto da Mirtes batendo no chão fazendo um barulho no asfalto do estacionamento. No carro, ela se acomodou confortavelmente no banco. Ela era ótima. Tinha uma postura excelente e era muito simpática. Não me lembrava dela assim na escola, claro, não falava com ela na escola.
- Então Cléo, esta de férias na casa da sua mãe?
Direta como uma flecha. Coloquei o cinto pensando na resposta. Tudo o que eu temia estava acontecendo. Perguntas que vinham e pra ser sincera, me assustavam.
- Não. Vou passar uma temporada com ela.
-Morando, você quer dizer?
E ela continuava. Cavando fundo nas profundezas dos meus segredos. Dei uma risadinha nervosa e liguei o carro.
- Isso mesmo, morando com ela.
Ela soltou um suspiro de satisfação. Pelo canto dos olhos eu ainda podia a ver sorrindo.
- Isso é ótimo, Cléo. Seu marido vem também?
Naquele momento, eu me arrependi amargamente de ter aceitado dar a carona a ela. Ela parecia mesmo muito fofa, mas estava começando a me irritar com a quantidade de perguntas que estava fazendo. Tudo o que eu não queria. Nem de longe o que eu tinha tido podia ser chamado de casamento. Então não era algo que eu gostasse de lembrar. Tentava não pensar no Thulio. Porque cada vez que lembrava era a mesma sensação, o sangue subia, eu tinha vontade de gritar e chorar. Apertei o volante com tanta força que os nós dos meus dedos começaram a ficar brancos. Respirei fundo e respondi:
- Não sou casada.
Liguei o rádio tentando dessa forma, calar a língua nervosa da Mirtes. O som encheu o carro e me recostei no encosto do banco. As pessoas podiam até não saber da historia, mas tinham bastante curiosidade. Eu achei que ia passar despercebida. Misturar-me sem ser notada. Não era o que estava acontecendo. As pessoas estavam me reconhecendo mesmo depois de eu ter tingido o cabelo algumas vezes. Eu era morena, agora estava loira. E eu tinha mudado fisicamente. Pelo menos é o que eu sentia. Não era o que eu estivera planejando, mas era o rumo que as coisas estavam tomando. Eu não ia poder fazer muita coisa. Talvez sair menos da casa da minha mãe.
- Esses jornais todos, esta procurando emprego?
E ela não parava.
- Sim, na verdade estou sim.
Ela se aprumou no banco. Preparei-me para mais uma pergunta daquelas que me arrepiam.
- Eu trabalho na M.E.E - ela riu e revirou os olhos - Meu Emprego Enseada. A agencia de empregos do meu marido, e minha, claro. Tenho certeza que podemos encontrar algo pra você lá.
Concordo com a cabeça de novo. Era só o que eu conseguia fazer. Toda essa agitação de Mirtes, as perguntas, os saltos e o perfume dela me deixam atordoada. Ela Continuou:
- Podemos passar lá agora. O que você acha?!
Aquela carona estava se tornando lentamente num suplício. Ela estava querendo me esfregar na cara o que ela tinha conseguido ou o que? Ela sabia o quanto eu era maldosa na época da escola? Era por isso que ela me aparecia toda salto e vestido, assim, do nada?
- Estou com o carro da minha mãe, acho que hoje não vai dar.
Ela assentiu e deu de ombros.
- Tudo bem. Mas me deixa seu e-mail, assim posso manter você informada sobre as vagas.
Dirigi de volta a casa da minha mãe, enquanto Mirtes falava sobre as pessoas que supostamente eu devia lembrar. Falou sobre seu emprego e o porquê de estar tão cedo na banca de jornal.
- Prospecção de novos clientes. E o bom quando seu marido é o chefe é que eu posso fazer isso de casa, às vezes.
Quando parei o carro na entrada da garagem da minha mãe e saímos, ela alisou o vestido e me perguntou:
- Você precisa de caneta pra anotar o e-mail?
- Não, tenho um cartão aqui. Em Algum lugar.
Enfiei a mão na bolsa e a revirei por algum tempo, ate que achei um antigo cartão. Da época em que fazê-los era um serviço corriqueiro pra minha secretaria.

- Aqui. - Estendi o pequeno pedaço de papel roxo pra ela. - Só o número fixo que não é mais meu. E o domínio do meu e-mail não é mais halloffame.com, agora é Hotmail.com.
Ela pegou o cartão e sem tirar os olhos dele agradeceu a carona e eu fiquei ali, olhando ela se afastar, pra saber qual era a casa ela. Ela caminhou a passos curtos, com o salto fazendo barulho no asfalto ate uma casa de cercas brancas e grandes janelas pintadas de azul. Com um jardim enorme na frente, todo florido. Uma bela casa. Minha mãe estava na cozinha quando entrei.

- Oi Cléo, onde esteve?
Coloquei a sacola com os jornais sobre a mesa.

- Comprar jornal, peguei seu carro, espero que não se importe.
Ela fez que não com a cabeça. A relação com a minha mãe era amistosa. Nos falávamos, e nos ajudávamos. Ou ela me ajuda, melhor dizendo. Fui ingrata e depois de tudo ela me acolheu na casa dela. Deixando-me comer da comida dela e às vezes fazendo pra mim. Quando disse pra ela que queria morar em Costa Grande ela me apoiou, disse eu estava agindo bem indo atrás dos meus sonhos. Ela me ajudou financeiramente nos primeiros meses. Ela sempre foi uma boa mãe. Costumávamos trocar segredos e caminhar na praia. Mas as coisas em Costa Grande acabaram saindo do controle e nos afastamos. Mesmo que ela tenha dito que não tinha problema eu voltar, que estava muito feliz por eu estar de volta e tudo mais, me parecia que eu estava atrapalhando e o peso das coisas que aconteceram ainda não saiu dos meus ombros. Lamento ter a feito sofrer tanto quando eu estava longe.

- Fiz café, você quer?

Peguei uma xícara e me servi do liquido quente. Eu sempre pude contar com a minha mãe pra tudo. Acho que ela sempre foi assim, desde a época em que ela era mais jovem. Minha tia Cátia sempre que tem uma chance conta a historia de quando minha mãe a salvou de ser descoberta pelo meu avô, que era o tipo de pai que dava surra de cinta - ao contrário do meu pai - quando ela trouxe um namorado pra casa mais especificamente pro quarto. E olha que tia Cátia conta essa história não porque gosta da mamãe e quer exaltar as qualidades dela, ela se orgulha das peripécias que aprontava. Minha mãe conseguiu distrair meu vô recitando um capitulo de Macbeth, de Shakespeare. Tomo um gole do líquido quente e minha mãe me da um sorriso encorajador.
- Alguma vaga em vista?

Dei de ombros

- Ainda não.
Ela se aproximou e fez um carinho no meu ombro.

- Vai dar tudo certo, você só precisa acreditar e esperar e coisas boas vão acontecer. Você vai ver.
Depois disso deixou a xícara que segurava na pia e deixou a cozinha.

Eu queria pensar igual a minha mãe. Queria com todas as minhas forças acreditar que ia dar certo, mas eu simplesmente não conseguia acreditar que alguma coisa boa podia acontecer comigo

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