2 - Tempo

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"A mais lamentável de todas as perdas é a perda do tempo."

Philip Chesterfield

As semanas seguintes se passaram como um borrão para mim. Tudo o que lembro é que o enterro de meus pais foi adiado por alguns dias até que a irmã de minha mãe pudesse vir do Brasil para cuidar de tudo, já que eu era menor de idade e a única outra pessoa que poderia se responsabilizar por isso era meu irmão, mas ele também estava morto.
Minha vida se resumiu em: ignorar os "Eu sinto muito!" de todos os colegas de trabalho, amigos, conhecidos e vizinhos dos meus pais; ignorar quaisquer palavras de socorro que Tania, irmã de minha mãe, dissesse, não importando que isso a magoasse; gritar com Jesse para que ele me deixasse sozinha; e depois me agarrar a ele e encharcar sua camisa com lágrimas.
Tia Tania tentava conversar comigo, puxar assunto sobre o colégio e a minha vida nos Estados Unidos durante as refeições, mas tudo o que ela recebia como resposta era o silêncio. Olhar para ela me deixava ainda mais triste. Seu cabelo loiro perfeitamente preso em um rabo de cavalo majestoso e sua postura, digna de grandes bailarinas, me faziam lembrar de minha mãe. Elas eram muito semelhantes, até mesmo na forma firme e carinhosa de falar. Naquela época eu não conhecia minha tia muito bem e isso me deixava irritada, porque eu me pegava observando suas ações que me pareciam tão familiares e me davam mais saudade de minha mãe.
Durante a noite eu tinha dificuldade para dormir, ficava agarrada ao meu travesseiro chorando e lamentando todas as vezes que eu deixei de participar de coisas junto com meus pais e com Josh por birra, então eu apagava de exaustão.
Uma manhã eu acordei com batidas na porta do meu quarto, me levantei xingando quem quer que estivesse se atrevendo a me incomodar e dei de cara com minha tia segurando uma mochila em uma das mãos e um enorme copo de vitamina de frutas na outra:
- O que você quer? - Perguntei ignorando seu ar determinado e voltando para minha cama.
- Levanta dessa cama e vai tomar um banho, está na hora de você ir para a aula. O Jesse está te esperando lá em baixo, disse que só sai daqui com você.
- Avise a ele que hoje ele não vai assistir aula. - Me virei na cama, ficando de costas para ela esperando que ela desistisse de me fazer ir a escola.
- Não, senhora! - Tia Tania disse, já puxando minhas cobertas me fazendo escorregar da cama para o chão. - Eu sou responsável por você agora, isso quer dizer que você tem que fazer o que eu digo, quer queira quer não. Agora, trate de tomar essa vitamina e se arrumar, vocês já estão atrasados. - Ela saiu do quarto batendo o pé sem nem mesmo esperar uma resposta.
- DROGA! - Gritei alto para garantir que ela ouvisse.
Ela já havia percebido, em tão pouco tempo, que usar o Jesse era a melhor forma de me obrigar a fazer o que eu não queria. Alguns dias antes tinha feito a mesma coisa para me convencer a ir ao ensaio da banda. Mesmo com meus argumentos de que não fazia sentido eu retomar quaisquer atividades que eu costumava praticar se em pouco tempo eu estaria de mudando com ela para o Brasil, Tania foi imbatível e agora fazia o mesmo em relação aos meus estudos.
E foi assim que eu fui obrigada a voltar a minha rotina, uma chantagem após a outra. Eu até me sentia um pouco mal pelo Jesse, o coitado era o mais novo objeto de uso de minha tia contra o meu luto. Até cheguei a questioná-lo, certa vez, do porque de ele se deixar levar sempre que minha tia o chamava para me obrigar a sair de casa:
- Jesse, você não cansa de ser usado por minha tia? - A gente estava saindo de casa para ir ao cinema com o pessoal da escola.
- Na verdade, eu que me ofereci para ajudá-la. - Ele confessou, sem jeito, passando as mãos pelos cabelos loiros e sorrindo sem graça. - A ideia de te chantagear com a minha presença foi minha, eu sabia que você não me faria perder os ensaios ou as aulas por puro capricho.
- Você é inacreditável! - Falei, fingindo estar magoada.
Depois de caminharmos em silêncio por alguns minutos ele voltou a falar:
- Eu não acredito que você vai mesmo embora para o Brasil. - Ele vinha tentando me animar quanto a viagem, mas aqueles olhos azuis que sempre se enchiam de lágrimas quando tocava no assunto da mudança o denunciavam.
- Nem eu! - Concordei abaixando a cabeça.
- Vocês já sabem quando vão? - Ele perguntou.
- Daqui três dias. - O informei.
- Já? - Jesse olhou pra mim surpreso. - Não achei que seria tão rápido.
- Pois é! Tia Tânia precisa voltar para o trabalho e para a família dela. O marido dela é advogado e está cuidando dos problemas jurídicos que envolvem a minha ida para o Brasil.
- Pelo menos você vai poder conhecer seus primos. - Jesse, como sempre, tentava me fazer ver o lado positivo das coisas.
Essa foi a última vez que eu e Jesse conversamos de verdade. Os três dias seguintes eu fiquei muito ocupada empacotando minhas coisas para a viagem. Tia Tânia passava os dias catalogando os pertences de meus pais e de meu irmão para poder enviá-los ao depósito que ela havia providenciado uns dias antes. Durante todo o tempo Jesse não apareceu em minha casa ou me ligou, eu sabia que ele estava triste por eu estar partindo e preferi deixá-lo em paz para que nós dois pudéssemos começar a nos acostumar com a ausência um do outro.
Mais tarde eu percebi que esse foi mais um momento em que eu perdi tempo, ao invés de aproveitar os momentos que me restavam com alguém que eu gostava, eu banquei a insensível e fingi que não era nada de mais.
Quanto tempo é necessário para se perceber que você esteve lamentando as coisas erradas? Uma semana? Um mês? Anos? Depende de quanto tempo você leva para perceber que tudo o que você conseguiu foi perder tempo, perder chances de mudar as coisas, perder pequenos ou grandes momentos, perder novas experiências.

Anjo Da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora