Capítulo 4

208 36 19
                                    

Ela tinha ficado chateada por algum motivo e eu não sabia o que era. OK, eu sabia que era por causa de todo aquele papo sobre faculdade, mas não tinha ideia de que era proibido falar sobre aquilo. Na verdade, de falar sobre a vida dela, de maneira geral. Era reservada demais. Tudo bem que eu era um completo estranho e ela não tinha nenhum dever de compartilhar nada comigo, mas mesmo assim eu esperava que ela o fizesse.

Da primeira vez em que a vi, achei que ela não tinha muitos problemas na vida, porque parecia tão tranquila cuidando dos seus afazeres da padaria; agora eu tinha certeza de que ela tinha algum. E dos grandes. Era estranho, convenhamos, que numa época em que até as pessoas com menos condições financeiras conseguissem entrar e cursar um ensino superior, com financiamento ou bolsa, mesmo trabalhando dois turnos, e justamente ela decidisse simplesmente não fazer. Claro que havia uma história ali. Será que não tinha tempo? Talvez tivesse um filho. Ou uma família para sustentar.

Ela era uma pessoa inteligente. Com dois minutos de conversa, percebi a sagacidade e o sarcasmo típicos de uma mente viva e com senso de humor refinado. Coisas que me atraíam demais, era preciso dizer. As boas maneiras e o jeito de falar também eram de alguém que teve alguma instrução. E era inadmissível que alguém assim simplesmente resolvesse interromper os estudos e optasse por ficar atrás de um balcão de padaria fazendo café apenas porque sim. Mesmo que o café dela fosse delicioso e tudo mais.

Não que houvesse alguma desonra em ser funcionária de uma padaria. Eu só achava um desperdício de capacidade que aquela mente tão perspicaz não estivesse sendo usada para encontrar a cura da AIDS ou tentando promover a paz mundial. Mas eu também sabia que nada daquilo dizia respeito a mim. Ela tinha toda razão em ficar chateada, afinal.

No dia seguinte, voltei para me desculpar, mais uma vez. Eu sei, estava ficando repetitivo. E não podia esperar tanto tempo como da outra vez para tirar a má impressão que tinha deixado. Não sabia por que precisava fazer isso, não sabia por que me importava, mas não conseguia tirá-la da cabeça. Não conseguia desde a primeira vez, mas agora estava ainda mais difícil. Só ficava pensando em seus olhos magoados. E na pele, no rosto corado e no quanto eu desejei tocá-la, naquela hora, e perguntar exatamente o que eu tinha feito de errado.

Ia entrando, hesitante, quando a vi parada no mesmo lugar, fazendo biscoitos, ou um doce, ou qualquer coisa assim. Estava linda como sempre; fios soltos caíam por seu rosto, agora corado pelo calor, e ela parecia mais distraída que nunca. Sem saber direito como abordar o assunto, já que a tinha feito ficar tão incomodada da outra vez, me sentei no mesmo banco das outras vezes e apenas aguardei. Ela ergueu os olhos cor de café e me surpreendeu com um sorriso, limpando as mãos no avental e vindo até mim.

— Escondi uns pastéis com a esperança de que viesse hoje — ela falou, me deixando realmente sem palavras. — Aqui.

Observei-a estender um prato com três pastéis lolita polvilhados de açúcar refinado. Sem saber o que dizer diante de todo aquele cuidado repentino, apenas peguei um pastel e dei uma mordida. Jesus, estava delicioso. A massa era leve e derretia na boca. Tinha gosto de infância. Só consegui sorrir e abocanhar o resto dele. Ela sorriu de volta, os olhos brilhando de entusiasmo. A expressão era fascinante.

Passamos uns bons minutos sem dizer nada; eu comendo pastel e ela me olhando comer, parecendo feliz demais enquanto o fazia. Quando estava no último, ela me serviu o café de sempre e depois sentou-se num banco em frente a mim. Respirou fundo, antes de falar:

— Eu fazia faculdade — declarou, inesperadamente. Quase engasguei. Será que hoje era o dia das surpresas? — Tranquei porque tive que sair de casa e arranjar um emprego para me sustentar. Sempre gostei de cozinhar, então seu João, o dono da padaria, me deixou fazer um teste aqui. Comecei a fazer meus pastéis, meus biscoitos, pretzels. Os clientes gostaram bastante eu fiquei com o emprego.

Um EncontroOnde histórias criam vida. Descubra agora