Existência

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Numa segunda-feira chuvosa, toda a escola recebeu a notícia de que um aluno veterano tinha sofrido um acidente grave e não resistiu. Esse aluno era o Adam, eu não era amiga dele, mas já tínhamos estudado juntos na quarta série, na verdade, nós éramos melhores amigos naquela época, e na quarta série não tinha divisão entre populares e não-populares, não naquela época.Nós  andávamos juntos,éramos inseparáveis.Adam era um bom amigo.Tivemos uma boa amizade. Mas o tempo passou, e como sempre, as pessoas mudam, e o Adam mudou.Depois da oitava série não nos falávamos mais como antes, pois foi aí que começou a tal divisão.Adam era bonito, e os bonitos automaticamente iam para o lado dos populares.Depois disso ele entrou para o time da escola e conheceu outros amigos,começou a ir em festas privadas,se tornou uma pessoa totalmente diferente do Adam da quarta série.Mas eu nunca o culpei por isso.Ele tinha todo o direito de aproveitar sua juventude vivendo o máximo. Apesar de viver uma vida vazia,Adam parecia feliz.Ele ainda tinha um pouco do Adam da quarta série. De vez enquando,quando nos encontrávamos no corredor,ele me cumprimentava, com um meio sorriso, que dizia:"Eu sei que fazemos parte de mundos diferentes hoje e eu mudei muito, mas, eu ainda me lembro de quando éramos amigos, então vou te cumprimentar".
Enquanto a diretora falava sobre a morte dele no microfone, centenas de pessoas choravam por ele,mas eu não conseguia chorar, porque eu não conhecia aquele Adam, por quem aquelas pessoas estavam chorando, eu só conhecia o Adam de sete anos atrás, e eles eram totalmente diferentes.E mesmo assim, eu me sentia um pouco mal por não estar chorando, mas eu estava triste, pois de qualquer forma, Adam estava morto e todos os seus sonhos, toda sua alegria e sua gargalhada, toda sua energia e seus projetos tinha sido mortos também. Adam não existia mais. Então eu me dei conta de que as pessoas não estavam chorando porque o Adam tinha morrido, mas sim porque Adam não existiria mais, e elas não conseguiriam lidar com isso, elas não iriam sentir mais a presença dele enquanto ele chegava em uma festa, elas não iriam ver ele passando correndo pelos corredores matando aula. Adam agora tinha se tornado uma lenda. E sua morte tinha o eternizado.
Depois do comunicado os alunos puderam ir para casa, então, como de costume eu fui procurar meus amigos, Clara e Davi, e como sempre eles estavam sentados na última fileira de bancos do ginásio. Olhando de longe consegui avistar Clara chorando de cabeça baixa enquanto Davi a consolava.Subi as escadas, passando por todas as fileiras até chegar a eles, fiquei parada por alguns segundos até que Davi notou minha presença.
-Ela está chorando por causa do Adam.-disse Davi,falando baixo como se só eu fosse escutar e Clara não.
Então Clara notou que eu também estava lá e levantou a cabeça,enxugou os olhos com as mangas da blusa preta e olhou para mim.
-É triste...-Disse Clara enquanto abaixava a cabeça novamente-Por que ele morreu?
-Ele teve uma juventude maravilhosa e agora está em um lugar melhor.-Disse eu tentando consola-lá, mesmo não sabendo se ele tinha ido pro céu.Mas de uma coisa eu tinha certeza, a juventude dele tinha sido intensa.
Davi,assim como eu, também não entendia o porque de Clara chorar tanto, já que não éramos próximos dele.
-Clara... Eu sei que é triste a morte de alguém, mas, você nem o conhecia.
Então Clara levantou a cabeça, enxugou as lágrimas, respirou fundo e ficou alguns segundos em silencio até conseguir falar.
-Eu tinha uma paixão platônica por ele...-Disse Clara que voltou a chorar como criança.
E então tudo ficou claro.Clara realmente tinha paixões platonicas por vários garotos da escola, principalmente do time de basquete. Apesar de ser bonita, Clara só tinha namorado uma vez na vida, um namoro que durou três anos, eles terminaram porque ele, o Tulio, a traiu.Clara então nunca mais confiou em mais nenhum garoto, muito menos falava com eles, mas Clara sempre foi muito carente e a forma que ela encontrou para se preencher foi criando paixões platonicas por vários garotos.
Depois de Clara se acalmar, decidimos ir pra casa, sempre íamos para casa juntos. Eu tinha um carro, na verdade, era uma máquina do tempo, uma camionete velha, uma D10, que tinha sido da minha avó.Eu era a única que tinha um carro, velho, mas andava, e levava a gente em qualquer lugar.
No caminho pra casa passamos pelo Mc Donald's, e como não tínhamos almoçado, paramos lá.
Davi era quem sempre pagava o almoço, ele era O Rico. Filho de dois empresários, Davi era um pouco solitário antes de conhecer Clara e eu. Nos conhecemos na sétima série, ele era novato na escola, lembro até hoje de quando o vi pela primeira vez na porta da sala, um garoto desengonçado, branco com o cabelo cacheado castanho escuro, e lindos olhos azuis. Davi se tornou nosso melhor amigo no primeiro dia de aula, e depois daquele dia nunca mais nos separamos.
Sentamos nos bancos e pedimos o mesmo lanche. Enquanto esperávamos, a chuva batia no vidro da janela ao lado, era um dia triste, Clara estava quieta, aparentemente ainda triste por Adam, ela era quem mais falava. Olhei pro lado e vi Davi com o olhar perdido, estava pensando em algo, até que ele percebeu que eu estava o observando e se virou olhando pra mim e sorriu.
-O que você está olhando em mim?
-Nada. Só estava observando você pensando. Aliás no que você estava pensando?
-Quer mesmo saber? No Adam. É estranho, não conhecia ele, mas, fico triste por ele.
-É... também estou triste.
Davi sorriu e deitou sua cabeça no meu ombro. Davi me fazia bem, gostava de ter ele por perto, ter um amigo homem é diferente de ter uma amiga mulher, você não pode falar sobre maquiagem ou garotos com ele, então suas conversas sempre serão diferente, e eu sentia que eu podia confiar nele mais do que em qualquer outra pessoa.
Depois de um longo silêncio Davi começou a falar sobre um assunto aleatório com um entusiasmo.
-A gente podia ir em algum show ou fazer uma viagem,não é?
Era nosso último ano, nós não sabíamos se íamos para a mesma faculdade, não sabíamos se iríamos continuar juntos.Então queríamos fazer algo para eternizar nossa formatura.
-Eu acho uma ótima idéia. O que você acha Alina?-Disse Clara.
-Eu acho legal também.
Nós éramos fãs do Noel Gallagher e do Coldplay. Sempre íamos nos shows deles em festivais.Na verdade a música sempre esteve entre nós, nos nossos aniversários, nossos presentes eram CDs.No meu aniversario passado ganhei da Clara um CD da Amy Winehouse, Back to Black, e de Davi ganhei um vinil da Lana Del Rey.
-Não sei se minha camionete leva a gente tão longe.-Disse eu me referindo a viagem.
-Sua caminhonete sempre nos leva em qualquer lugar, Alina. Aliás, ela gosta da gente, ela é nossa amiga, não sei porque ela ainda não tem um nome.
-Como você sabe que a caminhonete é uma menina?-Perguntou Davi sorrindo.
-Porque é A caminhonete, e caminhonete é feminino.Simples assim.
-Mas também pode ser o caminhonete, um menino, aliás, ele é azul.
Fiquei observando Clara e Davi debatendo sobre o gênero da caminhonete, e pensei como eles conseguem mudar de assunto tão rápido. Enquanto eles tentavam chegar em alguma conclusão o lanche tinha chegado.Comemos os lanches e de vez enquando falávamos sobre coisas aleatórias,mas não tocamos no assunto do Adam, na verdade, aquele assunto ja tinha terminado.
Depois que terminamos de comer fomos embora e a chuva estranhamente não tinha parado.Entramos na camionete e fui dirigindo a caminho de casa,morávamos no mesmo bairro, que parecia um condomínio, com casas exatamente iguais.
Fomos para casa ao som do The Cranberries, eu tinha um CD deles no carro, estava tocando Linger, enquanto a chuva caía no vidro e os carros passavam por nós, olhei para o lado e vi meu dois amigos cantando junto em voz baixa, naquele momento notei que mesmo se fôssemos nos separar, todos os momentos iriam estar eternizados, porque cada momento que passávamos juntos eram únicos. Eu os amava, eu amava meu amigos, de forma que estaria disposta a fazer qualquer coisa por eles.
Parei na primeira casa, Clara morava no início da rua, seus pais eram evangélicos, eram pessoas legais.
Clara então olhou pela janela do carro para ver se estava chovendo ainda e viu que a chuva tinha parado, então abriu a porta do carro.
-Vejo vocês amanhã.Beijos-Disse enquanto saía do carro pegando sua mochila.Fiquei com o carro parado esperando Clara entrar em casa, como sempre fazia.Clara caminhou até a porta de casa, se virou e acenou, o vento estava forte e bagunçava o cabelo liso e loiro dela.Até que Clara entrou em casa e então fui dirigindo até o fim da rua onde eu e Davi morávamos, nossas casas ficavam uma do lado da outra.Estacionei o carro e decemos, nos despedimos e entramos em nossas casas.
Encontrei meus pais na cozinha conversando, eles eram professores universitários e só davam aula a noite.Como sempre meus pais perguntaram sobre como tinha sido o dia na escola.
-Não tivemos aula, um aluno morreu em um acidente, e a escola está em luto.
-Jesus, que triste.Você o conhecia?-Perguntou minha mãe.
-Não, não muito bem.
-Por isso achei estranho você chegar mais cedo-Disse meu pai-Mas que bom que está em casa.Sua mãe e eu estávamos falando sobre sua faculdade.
Naquele momento meu coração gelou. Meus pais ja tinham decidido para qual faculdade eu iria, sem antes mesmo eu ter me decidido o que eu iria cursar. Eu literalmente não fazia idéia do que eu queria para meu futuro.
-C-como assim?
-Bom, nós estamos decidindo para qual faculdade você vai.Já estamos juntando uma grana para pagar.-Disse minha mãe com um sorriso enorme no rosto.
-M-mas... eu não sei o que eu quero estudar,mãe.
-Como assim? Você sempre disse que queria estudar Medicina!
Eu tinha dito isso quando eu tinha treze anos de idade, e eu vivia dizendo para meus pais que eu queria ser médica.Eu era criança, toda criança quer ser médica.Mas agora eu não era mais criança.Eu nem sabia o que eu queria ser, eu só queria ficar livre da escola.
-Mãe, eu disse isso quando eu tinha treze anos!
-Mas... Então você não quer estudar Medicina?-Perguntou meu pai.
-Não... quer dizer... Não sei.
E eu realmente não sabia, eu precisava dar uma resposta para eles, se eu dissesse que não, eles iriam perguntar qual faculdade eu iria querer fazer,e eu não saberia responder também,então aquela conversa nunca terminaria até eu me decidir qual faculdade eu iria querer fazer.Mas eu precisava dar uma resposta.
-Pai, mãe, eu não sei qual faculdade eu quero fazer, então, por enquanto, não precisam se preocupar com isso.
Meus pais ficaram em silêncio,não sabia se eles estavam decepcionados comigo, mas meu pai foi o primeiro a falar.
-Tudo bem... mas... é que... Tudo bem, você que sabe.
-Nós sempre iremos apoiar você, não é? Ricardo-Disse minha mãe se virando para o meu pai.
-Claro...claro.
Então depois disso eu pedi licença e subi para o meu quarto.Nós não tinhamos empregados,então quem arrumava meu quarto era eu mesma.Meu quarto era composto de livros,CDs,desenhos,fotos,uma cama,um guarda-roupa e uma escrivaninha. Eu tirei o casaco e me olhei no espelho do lado da cama,o reflexo mostrava uma menina magra,com um cabelo comprido e sem corte castanho escuro,com olhos grandes e escuros e bochechas rosadas.Essa era Eu, Alina.
Logo depois eu fui para o banheiro, estava frio, então tomei um banho quente demorado.
A noite depois do jantar eu subi para o meu quarto e deitei na cama com meu notebook, quando meu celular toca, era Lúcio, um garoto da igreja onde eu ia com meus pais aos domingos, ele era tipo um líder de um grupo de jovens, e mesmo eu nunca indo mas reuniões que eles faziam ele me considerava uma membro do grupo e sempre me ligava.Ele era uma pessoa legal, não sabia ao certo a idade dele,mas ele ja estava na faculdade,ele era bonito e minha mãe gostava dele,pra ela,ele era como um pretendente meu,mas o tipo forte,loiro e líder de grupo de oração não é pra mim.
Atendi o telefone e antes que eu pudesse falar "alô" ele falou primeiro.
-Alô? Alina? Oi, aqui é o Lucio, da igreja.-Disse ele,como se eu não soubesse quem era.
-Oi Lucio.
-Então, estou te ligando para falar que vamos fazer um passeio, todos do grupo vão, e como você faz parte do grupo, também quero que vá.
-Passeio? Quando?-Eu não sabia se iria, mas eu precisava sair de casa um pouco, conhecer gente nova, esquecer um pouco da escola e da triste morte do Adam.
-Vai ser no sábado, as três da tarde, o ônibus vai levar o pessoal,mas, se você quiser, eu posso te buscar em casa.
Ele realmente queria que eu fosse, as vezes dava até pra confudir se ele gostava de mim ou se só estava fazendo seu papel de líder.
-Ah, não precisa me buscar, eu vou junto com o pessoal.-Sem querer eu aceitei o convite e já era tarde de mais para voltar atrás.
-Ótimo! Que bom que você vai!-Disse ele com muito entusiasmo-E... tá tudo bem com você?
-Sim,sim. Está tudo bem comigo-Então eu fiquei me perguntando se eu perguntava se estava tudo bem com ele também, mas eu não queria saber, então ele respondeu.
-Que ótimo. Graças a Deus. Fica com Deus, Alina.
-Tchau Lucio. Fica com Deus você também.
Desliguei o a ligação e entrei no meu Facebook, fui no perfil de Lucio, fiquei vendo as fotos dele, ele tinha fotos com os amigos da igreja, fotos com a irmã mais nova, Rute, fotos de viagens, mas nada que me interessasse.Então depois fui no perfil do Adam, a foto de perfil dele era ele na praia,com uma prancha de surf debaixo do braço e sorrindo, os olhos castanhos claro brilhavam por causa do Sol.Rolei a página e li as homenagens, uma delas era de sua ex-namorada, Lia, que dizia:"Meu eterno Adam, sempre estará em nossos corações,não sei como irei suportar essa dor. Descanse em paz. Te amarei eternamente." e no final do texto tinha uma foto deles dois juntos, Lia estava o abraçando por trás e seu cabelo comprido e ruivo caía sobre o ombro e parte do rosto de Adam.
Então decedi não ficar mais lendo aqueles depoimentos, aquilo não estava me fazendo bem.Escovei os dentes e fui dormir mais cedo, o dia tinha sido longo.
Naquela noite eu tinha sonhado com o Adam, no sonho ele me abraçava forte e depois caminhava em direção a uma porta.Eu não entendi o que aquilo significava.
Na manhã seguinte, tive um dia normal, sempre a mesma rotina, a escola ainda estava em luto e ainda dava pra ouvir algumas pessoas chorando no final do corredor.Parecia que aquela tristeza nunca iria passar, as pessoas queriam a existência de Adam.

Eu, Alina...Onde histórias criam vida. Descubra agora