VERÃO...
Acabara de tocar o pequeno despertador que havia sobre o criado-mudo de madeira clara. Eram cinco e meia, e uma luz dourada que somente tem o alvorecer em San Francisco, iluminava a habitação. Toda a família dormia: Kali, a cadelinha, ao pé da cama, sobre a almofada, e Louis, sob o edredom, no centro da cama enorme.
O apartamento de Louis surpreendia pela ternura que dele emanava. Estava situado no primeiro andar de uma casa estilo vitoriano de Green Street, e compunhase de um salão com cozinha americana, um grande dormitório, um vestuário e um enorme banheiro com janela.
O piso era de taboas de madeira largas, de cor queimada, exceto no banheiro, onde eram pintadas de branco, alternando com ladrilhos negros. As paredes, brancas, eram decoradas com desenhos antigos, comprados nas galerias de Union Street, e uma moldura incrustada, finamente cinzelada por mãos de um hábil ebanista do princípio do século, que Louis havia envernizado em tom caramelo, enfeitava o teto. Alguns tapetes de gorgulho debruados de juta Beis delimitavam os espaços do salão, o refeitório e a lareira.
Em frente à lareira, um grande sofá forrado com algodão cru convidava à sentar-se. Os móveis escassos, dispersos, estavam dominados por lâmpadas com abajur plissados, que haviam sido adquiridos durante os 3 últimos anos. A noite havia sido muito curta.
O plantão de Louis, médico interno do Hospital Memorial de San Francisco, havia se prolongado muito mais do que as 24 horas habituais, devido à chegada, na última hora, de vítimas de um grande incêndio. As primeiras ambulâncias haviam chegado dez minutos antes do término do plantão e Louis havia começado a enviar os feridos às diferentes salas de tratamento, diante dos olhares desesperados de seus companheiros.
Com precisão, auscultava em alguns minutos cada paciente, o identificava com uma etiqueta colorida conforme a gravidade de seu estado, redigia um diagnóstico preliminar, ordenava os primeiros exames e os enviava às macas, para a sala apropriada. A classificação das 16 pessoas que chegaram entre as doze e doze e um quarto da noite, terminou às doze e meia em ponto, e os cirurgiões, cuja presença haviam solicitado, puderam começar as primeiras cirurgias daquela noite infinda, às 0h45 .
Louis assistira ao dr. Fernstein em duas intervenções seguidas, e, não foi para casa até que recebeu ordem expressa do médico, que o convenceu de que o cansaço o faria não trabalhar a contento, com conseqüente perigo para a saúde de seus pacientes. Saiu em plena noite do estacionamento do hospital, dirigindo seu Triumph e se dirigiu para casa em alta velocidade pelas ruas desertas.
"Estou muito cansado e dirijo em excessiva velocidade", repetia-se várias vezes para lutar contra o sono,ainda que a idéia de voltar para cuidar dos casos urgentes de carro, e não a pé, fosse por si só suficiente para mantê-lo desperto.
Chegou à garage e estacionou o velho automóvel. Passando pelo corredor, subiu de 4 em 4 os degraus da escadaria principal e entrou em casa com uma sensação de alívio. Os ponteiros do relógio de pêndulo pendurado sobre a lareira marcavam duas e meia. Louis deixou cair sua roupa no chão, no meio da grande sala.
Completamente nu, passou para o outro lado do balcão para preparar um chá. Os potes que adornavam a estante continham toda a espécie de ervas, como se a cada momento do dia, correspondesse um aroma. Deixou o copo no criado-mudo, deitou-se sob o edredom e dormiu imediatamente.
O dia anterior havia sido muito longo, e o que se anunciava exigia que se levantasse logo. Aproveitado os dois dias de festa, que por uma vez coincidiam com o final de semana, havia aceitado um convite para ir a casa de uns amigos, em Carmel. E, apesar do cansaço acumulado, nada pudera fazê-lo atrasar aquele despertar cedo. Louis se encantava em ver o amanhecer na estrada que, bordeando o Pacífico, une San Francisco à baía de Monterey.
Ainda sonolento, procurou o botão para desligar o despertador. Esfregou os olhos com as mãos fechadas e dedicou o primeiro olhar a Karli, estendida sobre a almofada.
— Não me olhe assim! Já não faço mais parte deste planeta — Ao ouvir sua voz, a cadelinha se apressou a rodear a cama e apoiou a cabeça no abdomem de seu dono. — Vou deixar você, dois dias, querida. papai passará para buscá-la às 11. Afaste-se um pouco, vou me levantar e dar algo para você comer.
louis esticou as pernas, deu um grande bocejo esticando os braços para cima e saltou da cama com os pés juntos. Passou por trás do balcão, esfregando a pele, abriu a geladeira. Bocejou novamente e pegou manteiga, marmelada, torradas, uma lata de comida para cães, um saco aberto de queijo de Parma, um pedaço de Gouda, uma garrafa de leite, um vidro de compota de maçã, dois iogurtes naturais, cereais e meio grapefruit; a outra metade ficou na parte inferior.
Como Kali o observava, movendo a cabeça, Louis olhou com cara de enfado e disse: — Tenho fome! Como de costume, preparou primeiro o desjejum de sua protegida em uma pesada tigela de barro.
Continuando, pegou sua bandeja e a levou para a mesa de trabalho. Dali, girando ligeiramente sua cabeça, podia Sausalito e suas casas suspensas nas colinas, o Golten Gate que unia os dois lados da baía, o porto de pesca de Tiburón, e, a seus pés, os telhados que se estendiam, escalonados, até La Marina. Abriu a janela de para em par.
A cidade encontrava-se em silêncio: apenas as sirenas dos navios com destino à China. Misturadas com os gritos das gaivotas, acompanhavam a languidez da manhã. Esticou-se novamente, e, com apetite, atacou o desjejum.
A noite anterior não tinha jantado por falta de tempo. Por três vezes tentara comer um sanduíche, mas interrompera, pois o chamavam para atender "urgência". Quando era apresentado a alguém e perguntavam-lhe a que se dedicava, respondia, invariavelmente: "A Correr". Depois de haver devorado boa parte do desjejum, deixou a bandeja e se dirigiu ao banheiro. Introduziu os dedos entre as lâminas de madeira da persiana, para incliná-las, deixou cair no chão o roupão de algodão e entrou na ducha. O jarro potente da água temperada acabou de despertálo. Ao sair da ducha, enrolou-se uma toalha ao redor da cintura, deixando as pernas e pés livres. Fez uma careta em frente ao espelho e decidiu-se arrumar o cabelo . Colocou uma skinny e uma camisa, tirou a skinny, colocou um jeans , tirou e colocou novamente a skinny. , e considerou que estava pronto para começar o fim de semana.
Ao virar-se viu a desordem reinante — roupas espalhadas no chão, toalhas, cama desfeita — e disse em voz bem alta, com determinação, dirigindo-se a todos os objetos do lugar: — Nem uma palavra! Nem reclamação! "Amanhã estarei de volta e os arrumarei para toda a semana". Pegou papel e caneta e redigiu uma nota, antes de pregá-la na porta do frigorífico com um grande ímã em forma de rã.
Mãe: Obrigada por tomar conta da cadelinha. Não precisa arrumar nada. Vou fazê-lo quando regressar. Passarei diretamente em sua casa para pegar a Kali, no domingo até as cinco. Com amor Seu doutor preferido .
Colocou o casaco, acariciou a cabecinha da cadela, a beijou e saiu de casa. Desceu os degraus da grande escadaria, saiu em direção à garage e de um salto se colocou dentro do velho conversível.
— Lá vou eu, lá vou eu, — se repetia — Não posso acreditar, é um verdadeiro milagre. A única coisa que falta é que você se digne a arrancar. Se você falhar uma só vez, pode se preparar. Eu vou afogá-lo em xarope, antes de levá-lo ao desmanche e vou trocá-lo por um carro novo, totalmente eletrônico, sem afogador e sem achaques quando fizer frio pela manhã! Você compreendeu bem? Espero que sim!! Contato!! O velho inglês parece ter se impressionado enormemente com a convicção de seu dono ao pronunciar aquelas palavras, pois seu motor pegou com o primeiro giro da chave. Um belo dia se anunciava.
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E Se Fosse Verdade... L.S
De TodoA historia passa em São Francisco . O jovem e belo Louis, estudante de medicina, sofre um acidente de carro, entra em coma e vai parar no mesmo hospital onde trabalha. Apesar de seu estado, Louis consegue, espiritualmente, voltar para o seu antigo a...