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Depois de algum tempo e trabalho duro, Daniel e Rhaine tinham colocado os cadáveres dos anjos e dos demônios estirados no corredor. Ele tinha limpado o sangue dos rostos, para eventual reconhecimento, além de examinar alguns corpos.
– Todos morreram do mesmo modo. – falou. – Explodiram. As veias principais romperam a pele, e o sangue saiu pelos poros.
– Você reconhece alguém? – Rhaine perguntou.
Daniel olhou para os corpos, um a um, até pousar o olhar em um deles, com as sobrancelhas arqueadas.
– Aquele ali é Ilasti. – apontou para um garoto de 20 e tantos anos. – Filho de Rithe.
– Filho?
– Sim. Isso encaixa algumas peças. Vamos ver lá dentro.
Com algum esforço, Daniel pôde distinguir um símbolo angélico desenhado no chão, mas não muito mais, porque o chão estava muito sujo.
– O que isso significa? – Rhaine perguntou.
– Que os anjos estão aprontando. E o desgraçado do Rithe sabe o que está acontecendo.
– Então... – mas ela parou de falar no meio da frase. Quando Daniel olhou pra ela, viu que os olhos dela estavam naquele azul claríssimo sobrenatural.
– Rhaine, controle-se. – ele falou sério, mas olhando para ela um pouco apreensivo. Ela olhou pra ele, fechou os olhos, e quando os abriu eles estavam normais de novo. Rhaine parecia estar se esforçando.
– Eles estão vindo.
Daniel sacou sua arma, e olhou em volta. Rhaine se protegia atrás dele. Logo, os primeiros anjos apareceram, vestidos com ternos, e segurando lanças e espadas.
– Olá, garotos. – falou. – Faz tempo que não nos vemos. – ele atirou no primeiro, que caiu, se transformou em luz e sumiu como fumaça. O próximo anjo pulou em Daniel, e conseguiu tirar a sua arma. Daniel bateu nele, mas aí viu um deles pegando Rhaine e avançou, mas um outro anjo o acertou antes, e tudo ficou preto.


***

– Daniel, você devia ter parado de se intrometer aonde não é chamado.
– Ora, mas é só isso que eu sei fazer.
Ele estava numa sala ricamente decorada, sentado numa poltrona. Na sua frente, também sentado numa poltrona, estava um anjo, aparentando uns 40 anos, elegantemente vestido com um terno.
– Gabriel, o que vocês fizeram? – Daniel perguntou, acendendo um cigarro.
– Não é da sua conta. Mas como nós somos muito legais, te deixaremos ir. E não fume aqui.
– Só vou embora com Rhaine.
– Então é assim que a concha se chama? Humanos são tão estranhos.
– Que história é essa de concha?
– Nathaniel te levará à porta. – o arcanjo ignorou as perguntas.
– Onde está Rhaine?
– Vá pra casa, Daniel.
Daniel levantou e se deixou ser levado até a porta. Não foi difícil nocautear o mordomo velhinho, e depois de alguma persuasão, descobrir que Rhaine estava sendo mantida no subsolo da mansão. O mais discretamente possível, ele encontrou e desceu as escadas.
Era um labirinto. Um monte de aposentos fechados, ligados por corredores. Daniel tirou de um dos bolsos do sobretudo uma correntinha com um pingente em forma de um globo com espinhos.
– Tuuva Rhaine. – o pêndulo começou a girar, e aí, como se estivesse perto de um ímã, apontou para frente. Daniel seguiu nessa direção. Depois de algumas curvas e corredores guiado pelo pêndulo, ele chegou a uma porta, onde o pingente começou a rodar, até ficar quieto.
Daniel olhou para a porta de madeira maciça, guardando o pêndulo no casaco. Murmurou umas palavras, e a porta abriu.
Lá dentro tinha um anjo, nenhuma surpresa. Mas Rhaine... ela estava deitada numa maca de pedra, tipo uma cama, dormindo. Enquanto Daniel olhava, o anjo o atacou com uma espada que tinha pegado num armário cheio de armas.
Ele desviou do ataque e conseguiu pegar um machado no tal armário. Se virou, brandindo o machado, mas o anjo encheu a própria espada de luz, e atirou em Daniel.
Se não tivesse pegado de raspão na sua perna, Daniel teria morrido.
– Isso não foi muito educado. – e aí jogou o machado no anjo. Acertou no torso dele, mas não o matou. Foi o suficiente para pregá-lo na parede.
– Onde está a minha arma? – ele perguntou ao anjo.
– Abominação...
– Tá, deixa disso. Eu quero saber onde está a minha arma. – ele fez um corte na palma da própria mão e deixou o seu sangue pingar na ferida do machado no anjo, que gemeu de dor.
– Ali, no armário. No fundo falso.
– Obrigado. – Daniel pegou a sua arma e depois de ver se ainda estava carregada, atirou no anjo. Então foi até Rhaine.
– Acorde.
Ela abriu os olhos e o olhou. Daniel estava pronto para usar um feitiço atordoante, mas ela apenas falou:
– Daniel... está ficando mais forte. Não vai demorar muito até...
– Não fale besteira, garota. Vamos sair daqui.
Ele estava ferido e sem carro, então teve que usar um feitiço de teleporte.
– Vigie a porta. – falou a Rhaine. Então tirou de um dos bolsos do casaco um vidro com uma solução aquosa e esverdeada. Com um pincel, desenhou no chão um símbolo, e botou as velas nos lugares certos. – Rhaine, venha. Fique aqui, no centro do círculo.
Mas ela caiu, ajoelhada, onde estava. Parecia estar com dor.
– Você tem um ótimo timing, sabia? – ele saiu do círculo e a pegou no colo, enquanto alguém batia na porta com violência do outro lado. Finalmente, quando os dois estavam dentro do círculo, e os anjos estavam entrando, ele recitou as palavras e um redemoinho de fumaça verde levou os dois até a Sala de Daniel, na sua casa, no ferro velho.

***

Levou o dia todo para a ferida na perna dele sarar. Daniel teve que usar todos os seus ungüentos e feitiços de cura pra situação não piorar. Rhaine estava aparentemente normal, e até o ajudava. No fim do dia, a ferida já estava cicatrizada.
Daniel sentia a sua parte demoníaca agitada dentro dele. Igualar as coisas estava ficando mais difícil. Ele se sentou à mesa da cozinha, tirou as ampolas de sangue do bolso, e encheu a seringa com uma delas. Também tinha um estilete, um cigarro aceso e um copo de uísque na mesa.
Sangue humano era a única coisa que o ajudava a manter a sua outra metade, a demoníaca, sob controle. A cada vez que ele achava que podia sair do controle, usava o sangue humano. O ruim é que tinha se tornado dependente.
Ele enrolou a manga no braço esquerdo, fez os procedimentos e injetou. O problema não era ele ser meio-demônio. Ele se dava bem com a sua natureza dividida. O problema era evitar ficar demoníaco demais, e perder o controle. Por isso injetava sangue humano. E os cortes... eram para diminuir a sua dor interior.
Sem Daniel saber, Rhaine o observava, escondida no corredor. Ele estava injetando em um braço, se cortando no outro, bebendo e fumando, praticamente simultaneamente. O seu rosto estava com aquela expressão séria e impassível ao mesmo tempo. O sangue que saía dos cortes manchava a mesa de plástico. Ela também viu as cicatrizes, várias marcas brancas e compridas, que se estendiam ao longo do braço dele.
Rhaine apenas o olhava, pensando. Daniel era como um pai pra ela. Uma versão deturpada e viciada do conceito normal de "pai", mas ainda assim. Ela se sentia segura com ele. Ela entrou na cozinha.
– Daniel...
– Oi. – ele sorriu um sorriso cansado. Não se importava se Rhaine visse aquela cena. Ela já tinha visto piores ao longo da sua curta vida.
Ela o olhou. Daniel estava acabado. Olheiras, olhos fundos, pálido... e ainda assim ele continuava bonito. Devia ser o lado bom de ser meio demônio: ele visivelmente tinha 35 anos, mas ao mesmo tempo parecia que tinha menos.
– Não faça isso. – ela afastou as lâminas ensangüentadas dele. – Não precisa ficar se cortando.
Por um momento, ele a olhou surpreso. E então, com tristeza.
– Você não entende. Isso é algo que eu preciso fazer. Não tente entender.
Ela olhou pra ele, desolada. Suspirou, e levou a sua atenção para a garrafa de uísque.
– Posso provar? – perguntou.
– Não. – ele falou enquanto limpava tudo. – Você é muito nova. – olhou pra ela.
– Acho que não faz diferença, né? Dados os fatos, e as minhas esquisitices...
Ele olhou incerto pra ela, e aí empurrou o copo na sua direção e voltou à limpeza. Rilhou os dentes com dor quando a água da torneira lavou os seus cortes. Rhaine tomou um gole do uísque e fez uma careta.
– É muito forte. – reclamou. Daniel riu.
– Sabia que você não ia gostar.
– Hum... o que nós vamos fazer agora?
– Amanhã nós vamos ver Rithe. Vá dormir, temos que acordar cedo, e você deve estar cansada. – ele disse.
– Eu acho que já dormi o suficiente. Embora...
– O quê?
– Os pesadelos. Toda vez que eu durmo, eles vêm. São horríveis.
Daniel só podia sentir pena dela. Ele se lembrava, de quando era mais jovem, como era difícil igualar a sua daemonidade com a sua humanidade. Daí os cortes.
– Você ficará bem. Qualquer coisa, você sabe aonde eu durmo.
Ele se despediu e foi para a sala, onde estava dormindo no chão, já que Rhaine ocupava o seu quarto.
Deitado no escuro, Daniel pensou sobre o que Ed tinha falado. Ele não era o pai dela... talvez não biologicamente, mas o seu instinto paterno estava começando a se fazer notado, contra a sua vontade. Ele só sabia trabalhar sozinho, sempre foi assim. Funcionava, e ele preferia desse jeito: sozinho. E ainda assim... estava andando pra lá e pra cá com uma garota de 15 anos, simplesmente porque queria protegê-la.
Ele ouviu a porta do seu quarto se abrindo, e logo uma tímida Rhaine estava na entrada da sala, segurando o travesseiro e olhando pra Daniel.
– Acho que vou precisar de ajuda. Posso dormir aí?
Ele piscou algumas vezes, surpreso, antes de se mover para o lado, criando espaço para ela. Rhaine foi até a cama improvisada (um colchão no chão), botou o travesseiro lá e se enfiou debaixo das cobertas ao lado de Daniel. Antes que ele soubesse, ela estava abraçando o seu braço como se fosse um bichinho de pelúcia, dormindo profundamente.
Talvez ele pudesse se acostumar com a paternidade recém- adquirida.

Angelus DaemonicusWhere stories live. Discover now