1. Diretoria

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"Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a Ti me confiou a piedade Divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina. Amém!"
- Oração ao Anjo da Guarda

- É uma pena que você tenha partido!
- É, é mesmo uma pena! - concordou ela, com um sorriso calmo tomando conta de suas feições.
Não consegui sorrir de volta.
O dia estava extremamente quente, mais quente que o normal, mais quente que o humanamente aceitável. Não havia nenhum vento, nenhuma brisa mínima para amenizar a sensação quase insuportável do calor.
Estávamos sentadas nas pedras ao leito do rio, nossos pés descalços tocavam a água morna, era reconfortante, apesar de tudo. Nossos cavalos, Estrela e Sol, galopavam em algum lugar perto dali, e eu podia sentir um suor fino e pegajoso escorrendo por meu pescoço e seguindo por dentro da minha camiseta. A dificuldade para respirar aquele ar abafado demais era grande. Nunca havia feito tanto calor em Campos do Jordão.
Olhei para Sara ao meu lado, e ela estava... tão linda. Seu rosto parecia impecável diante daquele calor todo, as roupas perfeitamente livres de qualquer vestígio de suor, os cachos, vermelho alaranjados por composição genética, soltos ao redor dos ombros e das costas, numa leveza rebelde e deslumbrante. Talvez viesse daquele cabelo cor de fogo todo o calor que eu sentia.
Ela ainda era minha Sara, minha melhor amiga, a pessoa mais incrível do mundo. Ela ainda era a minha alma irmã, mas havia algo diferente agora. Algo diferente na forma como ela se movia, quase como se a gravidade fosse uma piada, seus olhos também não eram exatamente os mesmos, continham um brilho tão vivo e cheio de ternura, que fazia meu coração inflar e doer de leve dentro do peito. Ela estava tão linda, e eu só queria conseguir conversar com ela, havia tanto a dizer, tanto a perguntar...
Mas eu não encontrava as palavras certas, ou talvez eu não quisesse realmente qualquer resposta.
- Eu sinto tanto a sua falta! - foi o que consegui murmurar, sem poder conter as lágrimas.
Sara tocou meu rosto com as pontas dos dedos, um gesto simples, porém carregado de carinho e certa dose de compaixão, quase como se ela sentisse pena de mim. Seus dedos eram frios como gelo, e a sensação, em contraste com minha pele quase em chamas, foi espantosa.
Éramos de polos diferentes agora. De mundos diferentes... Mas eu sabia que eternamente pertenceríamos uma a outra.
- Heloísi Silva! - ela disse meu nome com autoridade, e sua voz pareceu grave demais, quase masculina - Heloísi Silva! - Sara repetiu a sentença, balançando meus ombros com as mãos. - Heloísi... Heloísi... - ela estava gritando comigo, e aquela voz... Aquela não era a voz de Sara, parecia um homem ranzinza e amargo.
Encarei seu rosto por um momento, meus olhos molhados e assustados com a mudança repentina na atmosfera. Por que ela estava sendo tão rude comigo?
- Heloísi Silva! - Sara gritou uma ultima vez, empurrando meus ombros para trás, me fazendo perder o equilíbrio e pender para o lado, indo de encontro ao rio.
Mas eu não caí de cara na água, eu até preferiria que isso tivesse acontecido, mas não. O que aconteceu foi que eu simplesmente acordei. Acordei como alguém que acaba de sair de um daqueles sonhos em que se está caindo. Acordei num sobresalto, e dei de cara com o senhor Walter, de cálculo, parado diante da minha carteira, e toda a classe me encarando como se eu fosse uma aberração de circo.
- Desculpe incomodar, mas queria saber se não deseja um travesseiro, ou umas almofadas talvez, pra ficar mais confortável? - o professor me encarou com aqueles olhos semicerrados de quem está adorando a cena, sua voz era de deboche total.
Meu rosto estava todo melecado de suor e de lagrimas, e alguns fios de cabelo estavam grudados na minha boca e olhos. Eu provavelmente estava parecendo um maluca, mas havia algum tempo que parecer uma maluca já não me importava mais.
Respirei fundo, ajeitando-me na cadeira, enquanto escondia a boca com as mãos para disfarçar um bocejo gigantesco.
Não obtive muito sucesso.
- Me desculpe, eu só estava...
- Dormindo? - o professor completou a frase por mim, e as risadinhas vieram como brinde. - Se prefere dormir a assistir minhas aulas, tudo bem, mas vá fazer isso lá na diretoria. - aquele homem realmente parecia estar adorando apontar seu dedo magro em direção a porta para me indicar a saída, como se eu já não soubesse o caminho.
Era a terceira vez, só naquela semana, que eu dormia durante a droga da aula de matemática, e aquela ainda era a primeira semana do segundo semestre. Eu estava perdida de qualquer forma.
Meu peito queimava com a lembrança do rosto de Sara em meu sonho, aqueles seus olhos miúdos e quase verdes, que me transmitiam tanta paz e segurança, seu sorriso sereno, o toque doce. Perdê-la, era de longe, a pior coisa que havia acontecido na minha vida. "Sinto sua falta. Agora e para sempre!"
Juntei minhas coisas o mais rápido que pude, e saí da sala, tentando ignorar os olhares hostis e os cochichos debochados dos meus colegas de classe.

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