Movia-se com habilidade por onde passava. Agora, livre do trabalho de se esconder, corria com total facilidade. Os músculos da perna colaboraram com afinco após deixar a monótona posição de cócoras, fazendo-o alcançar com facilidade mais terreno em direção ao topo. Seu coração bombeava sem parar, de um jeito que parecia que a floresta toda ouviria e ele não precisaria fazer nenhum esforço para chamar a atenção do invasor. Enquanto descia por uma encosta e outra, contornava uma árvore ou se apoiava em troncos, ia repassando a ideia na cabeça, sem saber se objetivava ganhar confiança ou buscar um erro. Assim, corria para que chegasse logo ao monte, para que esta última opção não conseguisse tempo para aparecer. A ideia seria considerada loucura por qualquer uma que a ouvisse, por isso tentava não repetir consigo mesmo, sem sucesso. Chegou ao lugar próximo ao topo mais rápido do que imaginava, tão rápido que precisaria esperar o seu perseguidor. Estava de frente para a entrada da cavernas dos lobos e soube então que era hora de colocar aquela ideia em ação.
Ainda olhava e via como era incrível como aquilo não era tão visível de longe. A entrada era um enorme círculo, um grande buraco direto para o interior da serra, para o interior de um monte de sombras e incertezas. Imaginou como seria se deparar com aquilo à noite, e um arrepiou subir em sua espinha. Caminhou sob as gramíneas, se abaixando para pegar algumas pedras pontudas que encontrava vez ou outro na caminho, mas sem adentrar ainda na entrada da caverna. Estava esperando o momento certo. Cada vez mais que ouvia os passos do estranho, mais sentia um embrulho no estômago e sua respiração pesar. Devia ter apenas fugido e depois pensado em algum jeito de obter justiça, concentrando todo seu ódio de um jeito que não erraria. Mas agora, simplesmente, estava ali, preparado para um futuro no qual não sabia se tornaria presente.
Ouviu sons se aproximando ao longe. Sua posição do alto elevada permitia ver, mesmo que sem nenhuma nitidez, a posição do estranho, cada vez mais próxima. Sua audição aguçada estava concentrada naquela posição, ouvindo os passos, vacilantes e com dificuldade devido ao ambiente inospitaleiro, chegarem. A qualquer momento estaria ali em seu lugar e, sem parar, ambos iriam correr para dentro da gruta, numa perseguição, como um caçador atrás de sua caça. Eram seus papéis do macabro teatro do destino.
Assim que calculou que lhe sobravam dezenas de metros para lhe acalcançar, virou-se em direção à gruta, encarando-a. Jogou uma pedra com bastante força e recebeu como resposta um titilar de rochas duras se chocando, alto o suficiente sentir o pouso da pedra num monte de areia. Jogou mais uma e mais outra, chegando a atirar uma atrás da outra, fazendo um som contínuo, grave e, provavelmente ensurdecedor para quem lá dentro habitava. Parecia uma ideia tola, mas ele acreditava fielmente em acordar qualquer coisa lá dentro. Os lobos ainda viviam lá? Será que vou cair antes de enxergar qualquer coisa? O que tem lá dentro? Por quê eu sinto algo tão forte vindo de lá? Mas antes que pudesse responder passos ecoaram atrás de si e pararam. Sem precisar se virar, descobriu que agora era o momento de responder suas perguntas. E então quando viu, já estava correndo para dentro da caverna, com seu atacante em seu encalço.
O homem parecia ter abandonado a armadura, corria mais leve e confiante de que não precisaria de muito. Confiante de que voltaria para recuperar suas coisas. Estava chegando perto, o que o fez apressar os passos. Um fétido odor misturado de sangue, carne, pelagem e couro, entupiu as narinas do garoto, o que levou a perceber que ainda existia algo ali. Algo morto e algo vivo, e torcia para que o vivo fosse os lobos. Ele era uma ísca que atraía outra ísca para a boca da morte. O desejo de matar aquele invasor conseguia ser maior que a preocupação de cometer um suícidio. Era um sacríficio necessário e desejava que os lobos fossem trouxessem a morte, pelo menos, para o invasor. Nunca a linha entre tragédia e lucro ficara tão tênue, se é que existia, se é que não estariam, ambas, juntas. Enxergava um pouco com dificuldade, mas conseguia ver o caminho do túnel, que não tinha muitas curvas. Enxergar mais que o seu invasor era o suficiente para motivá-lo. Ele só precisa enxegar uma coisa e eu espero que seja a última coisa que verá, que chegue essa surpresa logo , pensou; quero enxergar esse lugar se tornando seu cemitério... mas acho que isso é pedir demais para os poucos deuses que temos.
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Rosas & Escudos
FantasiAs guerras trazem o inferno à terra, para que tempos de paz possam ser reconhecidos. Trazem à vida esperanças perdidas e matam futuros que ainda nem haviam de nascer do mundo dos sonhos. Em uma região aonde a dualidade domina tudo, desde sentimentos...