Fiquei uma semana sem dormir, uma semana inteira sem que ninguém aparecesse no meu quarto. A partir do terceiro dia, eu bebia tanto vinho que nem lembrava como ia parar na cama. Deixei os carregamentos e coisas chatas nas mãos de Etore. Bosco não era da minha confiança.
-Miranda. – chamou Bosco uma noite na biblioteca.
-O que?
-Ernest está na cozinha à sua espera.
-Ernest? Quem é Ernest? – fechei o livro que estava lendo
-Ernest é um dos membros. Ele é o responsável pelas entregas através do porto.
-Ah, ta. Mande ele subir até aqui.
Era difícil entenderem que era Etore o encarregado desse tipo de questão. Ernest queria dinheiro – que grande novidade – e pediu uma soma extra para gastos que estava tendo. ‘E é melhor eu ter este dinheiro Miranda, ou as entregas vão demorar mais para chegar ao destino.’ Ameaçou. ‘Escute Ernest, vou dizer apenas uma vez. Se a sua intenção é me ameaçar para conseguir mais dinheiro, sabia que não vai funcionar. Tenho tendência a ser pior que Cesare. E se ele ainda não havia dado cabo em você, pode apostar que mais uma dessas e eu vou furar a sua cabeça com um saca rolhas. Entendeu?’
O homem saiu branco do escritório. Etore entrou logo em seguida para que eu desse autorizações necessárias para entregas, compras e transportes. Eu estava completamente cansada de ficar em casa dando ordens, havia mais de dez dias que eu não saia de casa.
Era quase onze da noite quando terminei de me arrumar e mandei o motorista me levar até um bar chamado Grotta. Disse que ligava quando quisesse ir para casa e mandei avisar que se alguém questionasse minha decisão seria punido. Eu não tinha mais idade para que tivesse alguém me ditando ordens.
Entrei no bar e pedi um vinho. Notei que algumas pessoas me olhavam curiosas e outras comentavam. Havia alguns homens em volta de uma mesa jogando pôquer ou qualquer jogo de cartas. Reconheci alguns homens, sabia que estavam metidos com a máfia ou qualquer coisa ilícita. Passeei pelo bar com minha taça nas mãos e atrai olhares curiosos.
-Ora, quem temos aqui. – um dos homens em volta de uma mesa, fumando um charuto me olhou com interesse. – Dona Miranda Provenzano.
-E você quem é? – me virei para encarar o homem de cavanhaque que me encarava
-Belamino Fedato. – o nome não me dizia nada – Fiz negócios com seu avô em uma mesa como esta alguns anos atrás.
-Belamino Fedato. – murmurei. Então havia sido este o homem que havia conseguido extrair de Cesare uma pequena fortuna em euros.
-Eu soube de seu avô. Sinto muito. – senti o cinismo e a mentira em sua voz.
-Sente coisa nenhuma.
-Pelo visto a jovem tem o mesmo temperamento intempestivo do avô. – provocou – E pelo visto a mesma sede. O que acha de se juntar a nós?
-Quer arriscar devolver o que arrancou de Cesare?
-Foi um jogo limpo. – declarou irônico
-Claro que sim. – zombei – Pois bem, eu me junto a vocês. Mas escolho a mesa, o baralho e quero uma garantia de que você não vai trapacear.
-Como queira.
Escolhi uma mesa longe de qualquer espelho, embaralhei as cartas e separei os jogadores. As cartas foram dispostas, o jogo havia começado. Pedi um conhaque, e prestei atenção em cada movimento de cada jogador. Pouco a pouco, os perdedores deixaram a mesa. Já era tarde, poucas pessoas estavam no bar. Em pouco tempo restava apenas eu e Belamino com as cartas nas mãos. Ambos com uma pilha de fichas.
Ergui os olhos e vi Belamino sorrir. – Full House. – disse, como em vitória baixando um Rei de Espada, um Rei de Copas, e três ÀS, um de copas, um de espada e um de ouro. – Consegue melhor que isso querida?
-É claro que sim. – sorri em vitória. – Royal Straight Flush. – anunciei exibindo meu dez de copas, Valete, Dama, Rei e ÀS de copas.
-Impossível! – bufou e bateu na mesa – Você trapaceou! – gritou batendo na mesa e me apontando um dedo acusador.
-Eu não trapaceei. Aceite sua derrota, o dinheiro é todo meu. – sorri pegando as fichas. – Vamos contar e eu quero o dinheiro amanhã de manhã, às dez horas. Caso eu não receba este dinheiro, vamos conversar de outra forma.
-Escute aqui – gritou. Me virei e me dei com ele apontando uma arma para a minha cabeça.
-Se você ousar apertar este gatilho, não vai durar até de manhã. – eu estava exposta de mais para pegar minha pistola e corria o risco que Belamino atirasse.
-Prove que não trapaceou.
-Não há como trapacear, todos os que ficaram viram que o jogo foi limpo. Aceite sua derrota, além do mais, foi você quem me desafiou. – o espelho se partiu em mil pedaços quando Belamino apertou o gatilho. Não passou nem perto da minha cabeça.
-Sua trapaceira! Você vai pagar por isso. – em um segundo ele deu mais alguns tiros e fui jogada no chão. Ele estava enfurecido e gritava, querendo seu dinheiro. Virou mesas e foi pego por alguns homens. Quando a situação se acalmou, boa parte das lâmpadas estavam desligadas e pude sair para a rua.
Caminhei um pouco. Homem louco. Havia me desafiado e deveria aceitar sua derrota. Eu não tinha culpa de passar madrugadas inteiras jogando pôquer com meu avô, apostando balas de caramelo e chocolates. Por doces, havia aprendido a observar erros, deslizes e sinais dos meus adversários e por mais que as chances fossem mínimas, eu conseguia um Royal Straight Flush facilmente.
-Não deveria andar por ai sozinha Miranda. – uma mão se pôs as minhas costas. A mesma mão que havia me jogado no chão. E coincidentemente a mesma voz que sussurrava coisas em minha cama.
-Anatole? – encarei surpresa.
-Por que o espanto?
-Eu... não é nada. O que fazia no bar? – continuamos caminhando, o barulho de meus sapatos ecoando na escuridão vazia
-Pensei em passar lá e beber uma cerveja, mas quando vi Belamino sentado a uma mesa de pôquer e soube que era um desafio, quis ficar para ver e mais ainda quando você estava na mesma mesa. Uma proeza interessante, Royal Straight Flush não é para qualquer um.
-Cesare me treinou bem. – sorri ao lembrar dos bombons e caramelos
-Parece que sim. Se bem me lembro você sempre pedia caramelos.
-Como sabe? – me virei para olhar em seus olhos, mas era escuro de mais
-Não importa.
-Parece que você sabe coisas de mais a meu respeito.
-Talvez eu saiba. Vou levar você para casa, antes que resolva aceitar qualquer outro desafio. – sorriu ao abrir a porta de seu carro preto.
-Não aceito qualquer desafio.
-Mas você sabia que Fedato é um homem perigoso e que não vai deixar barato. É melhor tomar cuidado.
-Acho que sei me cuidar.
-Espero que sim. – e fechou a porta do passageiro – Fiquei contente que as coisas se resolveram entre nossas famílias.
-Eu também.
Não conversamos muito, o caminho era curto até em casa. Anatole. Tinha que ser ele. Só podia ser.
-Está entregue. – disse assim que parou o carro na alameda
-Obrigada.
-Miranda. – segurou minha mão – Se precisar de qualquer coisa, me avise.
-Tudo bem. – nossos rostos estavam perto, perigosamente perto. Os olhos claros estavam fixos na minha boca e consegui me afastar a tempo. – Boa noite.
Era Anatole então o meu homem mascarado. Entrei em casa como uma tola sorridente e fui me deitar feliz. Pensei no jogo e em como resolveria a questão. Poderia pensar em tudo amanhã.