Sala de Estar

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As lembranças da minha infância resumem-se a farras e tapas. Sinto-me num mar de névoa espessa ao tentar recordar detalhes, datas, rostos, nomes. É como se houvesse um intervalo sombrio entre determinadas épocas, numa espécie de coma induzido pelo tempo que se passou. Sou capaz de recordar sensações intrauterinas porém incapaz de lembrar de fatos registrados em álbuns de fotografia.

Apesar deste desmemoriamento seletivo, alguns momentos do meu passado invariavelmente invadem meus pensamentos; dentre eles, minhas visitas semanais na avenida doutor Cesar, naquele prédio verde, onde fazia aulas particulares com a Sra. Ruth, reforço esse que desconheço, podendo variar entre português e matemática, pouco importa.

Tirando a matéria, lembro-me de todo o resto. Um apartamento de três quartos, estilo anos 70, com sala pequena e aconchegante, decoração austera e um detalhe que sempre me chamou a atenção: o televisor ligado a baixo volume na TV Cultura. Pelo horário em que eu frequentava a casa, a programação variava entre concertos de música clássica e resenhas literárias. Aquilo me impressionava muito, era como se não existisse outro canal para a solitária Sra Ruth, solteira e sem filhos, que fazia da tela e de seus livros a companhia que lhe faltava.

Eu era tratado como adulto, no auge dos meus doze anos. Toda semana o mesmo ritual: recepção formal, um chá impecavelmente servido e poucas palavras de descontração. Eu adorava aquilo. Talvez por sentir-me adulto, por tomar chá, algo que nunca fazia e sequer gostava, mas que naquele ambiente era quase que um rito de passagem.

Frequentemente minha impressão era estar na presença de um membro da família real, tamanha era a retidão da estimada professora. Sóbria, tenho a certeza que me ensinou muito, só não sei ao certo o quê.

  Creio que era proposital, talvez esse tenha sido o real objetivo dessas aulas de reforço, me ensinar a tomar chá enquanto discutíamos fatos da vida ao som de Bach. Obrigado Ruth.

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