A primeira lembrança que me veio à mente hoje foi de (mais) um Dia dos Pais em que estava trabalhando. Numa época em que tive que voltar a dar plantão na emergência, tinha tudo para ser um dia calmo de serviço. Até que aquele adolescente entra com o pai no consultório. De cara me chamou atenção pois ambos estavam vestidos de maneira muito semelhante com uma espécie de vestimenta de motociclista o que já me cativou. A queixa era vaga, uma dor nas costas, muito provavelmente muscular, reclamava do travesseiro alto que não se acostumava nunca, etc. Nenhum outro sintoma, nada. O pai, tranquilo e orgulhoso, só observava o garoto, que pela desenvoltura, já poderia ir sozinho ao médico e relatar seus problemas.
O exame físico nada acusava, com a exceção de dor à palpação na musculatura paravertebral e cervical, o que só reforçava a tese do maldito travesseiro.
Quando eu já fazia um discurso inflamado das mazelas dos acessórios da NASA ou daqueles com pluma de ganso, o garoto começa a tossir. Ele não havia se queixado de tosse em nenhum momento. Eu questionei sobre isso e ele não valorizou muito o sintoma, dizendo que havia começado à pouco. Ausculta pulmonar normal mas aquele timbre da tosse não me agradou e resolvi pedir uma radiografia torácica antes de liberá-lo. "Just in case" como diria o outro, normalmente não o faria mas sei lá, pedi.
Alguns minutos depois a dupla de "Hell's Angels" tupiniquim retorna com o exame. Lívido, observo a imagem sem acreditar no que via. Aos colegas médicos, um alargamento de mediastino considerável, daqueles que te fazem lembrar dos tempos da faculdade e os temidos "4 Ts" do mediastino e ficar admirado como essas associações de palavras funcionam desde o tempo dos cursos pré vestibulares, para nos fazer decorar certas coisas.
Peço licença e levo o exame aos colegas clínicos gerais uma vez que o garoto era enorme e vai que o mediastino era normal e eu estava viajando. Mas não. Claro que não. Volto ao consultório e explico que havia uma alteração significativa no exame e que deveria ser investigada mais profundamente. Enfim, conseguimos um encaixe para tomografia e com o pneumologista para o dia seguinte e, para minha surpresa, o pai contou à recepcionista do PS que sua esposa havia tratado um linfoma recentemente e que ao ver o raio X e a minha cara de espanto ele sabia que se tratava do mesmo problema.
Enfim, realmente era uns dos "4Ts", o "terrível linfoma" e imediatamente me lembrei do professor Collares, que primava tanto pelo diagnóstico. E uma sensação terrível tomou conta de mim naquele momento, mesmo sem ainda saber exatamente qual dos 4 Ts era, mas nada de bom pode sair dali. Não fizeram essa associação à toa. Dar uma notícia daquela no Dia dos Pais era algo que nunca imaginei fazer. Ao mesmo tempo a satisfação com o diagnóstico, numa dessas dualidades que somente a medicina pode nos trazer me deixou atônito. Poderia muito bem não ter pedido aquele raio X, ter prescrito um relaxante muscular ou o que fosse e certamente ele voltaria dias, semanas depois, provavelmente pior.
Não sei o destino do garoto mas desejo que ele possa estar presenteando seu pai neste momento com um abraço afetuoso enquanto eu choro de emoção por ter vivido este momento único.